A obra-prima dos irlandeses do U2, lançada oficialmente no dia 9 de março de 1987, soa cada vez mais atual como análise da relação dos EUA com o mundo… e vice-versa
Quando a obra-prima de uma banda completa três décadas de vida, claro, é de se esperar que haja algum tipo de comemoração. Ainda mais quando estamos falando de uma bolacha como The Joshua Tree, quinto álbum de estúdio dos irlandeses do U2, o disco que a Rolling Stone afirmou na época que transformou os caras “de heróis em superstars”. Não é pouco.
É mais do que o seu ápice criativo, mas também o seu incontestável estrelato comercial. Por mais que, até aquele momento, eles já tivessem colocado quatro álbuns no mercado e fossem relativamente conhecidos internacional, foi em 1987 que as coisas aconteceram. Liderando as paradas em 20 países diferentes, The Joshua Tree tornou-se um dos álbuns mais bem-sucedidos do planeta, com mais de 25 milhões de cópias vendidas. With or Without You e I Still Haven’t Found What I’m Looking For viraram os dois únicos singles número 1 do U2 nos EUA e o disco ainda ganharia, em 1988, o Grammy de “álbum do ano” e “melhor performance rock”. Ao final daquele ano, o U2 se tornaria a maior banda de rock do mundo.
Um feito e tanto e que fará com que a banda saia numa turnê comemorativa pelos EUA e Europa, ao longo do ano, tocando o disco na íntegra. O grande ponto de interrogação aqui é o seguinte: o U2 não é exatamente um grupo conhecido por cultuar a nostalgia, por ficar eternamente celebrando os feitos passados. Goste-se ou não do espírito messiânico que Bono Vox incorporou atualmente com seus discursos, o quarteto nunca teve medo de ousar, de experimentar, de continuar lançando material novo, ainda que de execução controversa.
Então... por quê? Qual o sentido de uma turnê só de The Joshua Tree – que completa 30 anos exatamente nesta quinta-feira, dia 9 de março?
“É como se fosse um pêndulo que de repente vira para a outra direção. Estávamos falando sobre o aniversário do Joshua Tree e aí nos caiu a ficha de que estamos num momento em que o ciclo está se fechando”, explica o guitarrista The Edge, em entrevista para a revista Rolling Stone. Ele recorda que o álbum foi escrito no meio dos anos 80, durante a era Reagan-Thatcher, reconhecida pelo intervencionismo internacional e pelos conflitos sociais. “E parece que estamos voltando um pouco para aquela época. Foi meio ‘ei, estas canções agora ganharam um novo significado e uma ressonância que não tinham três, quatro anos atrás’. Podemos celebrar este álbum, que renasceu sob este novo contexto, e repensar estas canções. Este é um momento especial, para um disco especial. Estamos felizes de pensar sobre um álbum que tem tanto tempo, mas ainda é bastante relevante”.
Faz um PUTA sentido, considerando os planos mirabolantes de quem atualmente ocupa a principal cadeira da Casa Branca.
“Parece que estamos voltando um pouco para aquela época”
Apesar de não haver necessariamente um consenso entre Bono, The Edge, Adam Clayton (baixo) e Larry Mullen Jr. (bateria) sobre uma possível nova direção musical depois das experimentações ambientais do disco anterior, The Unforgettable Fire (1984), os quatro concordavam que se sentiam totalmente desconectados do synthpop e do new wave que dominavam a cena musical da época.
Aos poucos, eles começaram a decidir, influenciados pela fixação do vocalista, que o caminho a seguir deveria aquele que levava à “terra da liberdade”. O país no qual o U2 fazia praticamente uma turnê por ano desde o começo dos anos 80. Na verdade, tudo gira um tanto em torno da relação de amor e ódio da banda pelos EUA, usando letras social e politicamente engajadas. As novas músicas eram mais tristes, sombrias, desoladas, coração partido. Mesmo aquelas mais espirituais, com as referências bíblicas que caracterizariam o grupo dali pra frente, carregavam uma tristeza inata.
O ponto que as conecta é a ambientação: cada canção soa um pouco como um easy rider, uma viagem de moto, um filme de aventura de cores sépia. A ideia era dar mesmo este clima cinematográfico, evocando os espaços abertos da América, seus desertos, suas estradas, seus rios, a chuva solitária, a poeira. “Eu amo estar aqui. Eu amo a América, amo o sentimento destes enormes espaços vazios, os desertos, as montanhas, até mesmo as cidades”, afirmou Bono em entrevista à Propaganda, a revista oficial da banda distribuída para os fãs. “Então, tendo me apaixonado pela América ao longo dos anos conforme estivemos em turnê, tive que ‘lidar’ com a América e com o jeito que estava me afetando, porque a América também tinha um efeito no mundo naquele momento. Neste disco, eu lidei com isso num nível político pela primeira vez, ainda que de maneira sutil”. E completa: “Eu comecei a ver duas Américas, a mítica e a verdadeira”.
The Edge completa explicando que, para alguém vindo da Irlanda, um país que tradicionalmente teve uma onda migratória representativa para os Estados Unidos, a nação da Estátua da Liberdade inspirou muitas gerações com a coisa toda de ser a Terra Prometida. “Nos focamos nesta promessa, mas também no que a América era de verdade. Eu li sobre os Panteras Negras. Nós exploramos a América sob diversos ângulos. E rolou um momento em que toda a visão do que a América representava estava sob ameaça. A América de Thomas Jefferson, de John F.Kennedy. E aqui estamos de novo. É uma loucura”.
Basta dizer que canções como Bullet the Blue Sky e Mothers of the Disappeared, por exemplo, têm inspiração no que Bono viu, ao lado da esposa Ali, em suas visitas à Nicaraguá e El Salvador, com uma série de conflitos políticos e a intervenção militar norte-americana enquanto o povo passava fome nas ruas. A segunda, aliás, tem um lance de melodia espanhola de guitarra que Bono usou originalmente em uma canção que ele escreveu na Etiópia, para ensinar as crianças os princípios da higiene básica.
O disco começou a ser gravado em janeiro de 1986, na Irlanda, mas o grupo acabou interrompendo brevemente o processo para participar da turnê beneficente A Conspiracy of Hope, da Anistia Internacional, ao lado de Sting, Lou Reed e Peter Gabriel. Perceba que estamos falando de outros três artistas bastante engajados, que ajudaram o U2 a manter o foco no “vazio e na ganância da América sob o governo de Ronald Reagan”.
Deu pra sacar?
As letras, no entanto, foram inspiradas também num momento bastante complicado que todos os integrantes vinham passando. “Por isso a imagem do deserto foi tão forte pra nós. Porque aquele ano foi um deserto pra gente”, diz Bono. Por exemplo, embora Exit tenha claro tom de crítica às relações internacionais dos EUA, sabe-se que a canção é originalmente um mergulho nos pensamentos de um assassino psicótico. E enquanto Running to Stand Still era “estrelada” por um casal viciado em heroína, One Tree Hill era uma homenagem ao roadie e assistente pessoal de Bono, Greg Carroll, que morreu aos 26 anos em um acidente de moto. “O deserto foi imensamente inspiracional para nós como uma espécie de imagem mental para o disco”, conta Clayton. “Muita gente enxerga um deserto como um lugar inóspito, o que é verdade. Mas ele também pode ter uma imagem mais positiva, porque a gente pode fazer qualquer coisa com uma tela em branco como aquela”.
Já em termos sonoros, este é um U2 ampliando o seu leque de opções musicais. Tudo começou um ano antes, quando Bono participou de um evento do guitarrista Steven Van Zandt (E Street Band) contra o apartheid e teve a chance de passar um tempo com Keith Richards e Mick Jagger, dos Stones. E conforme os caras iam tocando blues, o irlandês ficou envergonhado por sua falta de familiaridade com o gênero. Afinal, as raízes musicais do U2, inicialmente, tinham sido as bandas de punk rock que ele ouviu ainda jovem, na década de 70, bandas inglesas e também um pouco da cena que surgia na Alemanha. Junte a isso a relação que ele começou a ter com caras como os integrantes do The Waterboys e os igualmente irlandeses do Hothouse Flowers, além de ninguém menos do que Bob Dylan, e eis que o seu Vox começou a misturar um pouco da música tradicional irlandesa com o folk americano.
Não só folk, aliás. I Still Haven’t Found What I’m Looking For tem uma forte influência da música gospel do sul dos EUA, por exemplo, enquanto a suave balada ao piano Running to Stand Still tem um quê de blues acústico com gaita e tudo mais. Aliás, Bono também toca gaita em Trip Through Your Wires, outra que tem um jeitão bem blueseiro. A voz de Bono, por falar nele, parece mais madura e, ao mesmo tempo, mais apaixonada, com um alcance vocal mais amplo e diferente do que ele tinha feito até o momento. Já a guitarra de The Edge ganha ainda mais contornos do estilo que se tornaria a sua marca registrada ao longo dos anos, uma coisa mais minimalista, sem exageros virtuosos e com foco nas partes mais simples que servem pra dar o clima da canção. Menos, definitivamente, é mais.
No fim das contas, os quatro estavam tão empolgados que o álbum foi quase que inteiramente gravado “ao vivo”, com todos os instrumentos juntos, ao invés de ter tudo sendo gravado separado, mas novamente com produção da dobradinha Brian Eno & Daniel Lanois. E para ajudar a criar uma atmosfera diferente, as gravações não rolaram num estúdio tradicional, mas sim na chamada Danesmoate House, uma mansão de arquitetura georgiana na região de Rathfarnham, ao sul de Dublin, bem aos pés das Montanhas Wicklow. A sala de jantar virou o centro de controle, com os equipamentos de gravação e de mixagem, enquanto a sala de estar era onde os músicos efetivamente tocavam. Tudo com um puta pé direito alto e paredes de madeira nobre para ajudar no eco. “O som que a gente captava era muito intenso, barulhento, mas um barulho bom, bem denso, bem musical”, explica Lanois.
As sessões geraram tanto, mas tanto material, que parte do grupo (incluindo o próprio Bono) considerava a ideia de lançar The Joshua Tree como um disco duplo, incluindo todos os lados B. Mas a versão que acabou saindo oficialmente foi aquela de 11 faixas que bem conhecemos.
Mas, curiosidade, originalmente o álbum quase se chamou The Desert Songs ou Two Americas, ambos por motivos bem óbvios. Só que a decisão do batismo final veio, ainda que indiretamente, do fotógrafo Anton Corbijn, responsável pelos cliques que ilustraram a capa e o encarte. Durante uma viagem com a banda pelo Deserto do Mojave, na Califórnia, para fazer as imagens de divulgação, Anton comentou com os caras sobre as árvores chamadas Yucca brevifolia, conhecidas em português como “Árvores de Josué”. As tais Joshua Trees.
Tratavam-se de plantas esquisitas, retorcidas, porém bastante resistentes. Quando Bono descobriu, então, que elas foram assim batizadas pelos primeiros colonizadores, muito religiosos, como uma referência à imagem do personagem bíblico Josué erguendo os braços para o céu em oração, tava definido: aquele seria o nome do disco.
A árvore da foto famosa nem existe mais: foi derrubada pelo vento no começo dos anos 2000. Mas o local no qual o clique foi feito, na Rota 190, virou ponto de encontro de fãs da banda e até cenário de homenagens deixadas por lá, incluindo uma plaquinha perguntando “HAVE YOU FOUND WHAT YOU’RE LOOKING FOR?”. O mais curioso é que, desde então, o U2 nunca chegou a tocar ali por perto – festivais como o Coachella rolam nas proximidades e ter a banda como headliner faria um duplo sentido histórico.
De qualquer maneira, mesmo sem Coachella, a The Joshua Tree Tour 2017 já é um sucesso antes mesmo de começar (o primeiro show será no dia 12 de maio, em Vancouver). Aproximadamente 1 milhão de ingressos foram vendidos nas primeiras 24 horas depois que as vendas foram abertas – e, justamente por conta da procura, eles tiveram que anunciar shows extras em Londres, Roma, Paris, Amsterdã, Pasadena, Chicago...
Já se sabe que vai ser a primeira vez que eles tocarão Red Hill Mining Town ao vivo, a música sobre a greve dos mineiros ingleses que aconteceu em 1984, em oposição à decisão do governo Thatcher de fechar uma série de minas consideradas “não lucrativas”. A greve uniu os trabalhadores e gerou uma série de manifestações, algumas delas tornando-se conflitos violentos, tornando-se um dos maiores confrontos sociais do Reino Unido contemporâneo. Tem bastante relação com o que está acontecendo no mundo hoje em dia? Mas ô se tem.
No entanto, além de Bullet the Blue Sky, que Bono já vinha introduzindo recentemente com um discurso contra o presidente americano e a sua política do muro, um momento que promete ser intenso, poderoso, é mesmo a execução de Where the Streets Have No Name. Estamos falando de uma canção que é basicamente sobre o fato de que, em Belfast, a religião de uma pessoa podia (ou ainda pode?) ser baseada de acordo com a rua na qual ela morava. É, num contexto mais amplo, uma faixa sobre as pessoas não serem julgadas por suas crenças, sua cor de pele, sua origem.
Te lembra algo? Não só lá... como aqui?