A busca por identidade em três docs no Netflix | JUDAO.com.br

Uma jornada da Síria a um subúrbio de Nova York

No palco, um homem conta que morou quatro anos em um banheiro, em uma época barra pesada de consumo de crack. Pouco tempo depois, um homem trans conta que teve medo de ser estuprado diversas vezes ao longo da vida, quando ainda tinha a aparência de uma moça e que, hoje, as mulheres é que evitam caminhar na mesma calçada que ele tarde da noite.

Ainda em outro momento, uma senhora conta de seus três abortos espontâneos após o nascimento do primeiro filho, um deles aos oito meses de gravidez, e como a vida a surpreendeu ao lhe dar uma filha após tanta devastação.

São trechos do espetáculo Amadores, da Cia. Hiato, especialista em contar histórias humanas e contemporâneas, cuja temporada chegou ao fim semana passada.

O elenco era formado por apenas três atrizes e um ator, acompanhados de 15 pessoas que nunca tinham atuado na vida, daí o nome do espetáculo. Em comum entre eles, a busca por redenção e identidade em frente a uma plateia abarrotada de centenas de pessoas.

Saí do espetáculo muito emocionado e acordei no dia seguinte, um domingo, querendo mais daquilo. Mais histórias reais de gente como a gente, que, quando conta suas glórias e traumas, se torna personagem de um drama único, e encontrei o que estava buscando na sala de casa mesmo, na sessão de documentários do Netflix.

Primeiro, reencontrei essa sensação em #chicagoGirl: The Social Network Takes on a Dictator, a história de Alaa Basatneh, uma garota que desde o começo do levante popular contra a ditadura sanguinária de Bashar Al Assad, cuja repressão trouxe a Síria para o caos atual, atua como uma super gerente de social media da resistência, veiculando informações e ajudando a reunir rebeldes.

Um detalhe: boa parte do trabalho dela é feito com seu próprio computador, pilotado de seu quarto cor de rosa, usando o wifi de sua casa, em Chicago, nos EUA.

Ela nasceu no país que busca proteger a qualquer custo, mas é também americana, já que foi morar na terra dos Obamas ainda muito pequena. A dicotomia entre o senso de dever e a impotência de Alaa prende os olhos na tela e arrasa o coração. No entanto, ali, lidando com um dos conflitos mais covardes e sanguinários de nosso tempo, vemos a construção de um mito moderno, cuja história precisa ser contada mundo afora.

O segundo filme que vi nessa sequência se tornou um dos meus documentários preferidos da vida. A gente vai fazendo aniversários e parece que, aos poucos, perde a capacidade de se surpreender de forma arrebatadora. A história dos irmãos Angulo, criados em isolamento social absoluto, em pleno coração suburbano de Nova York, uma das regiões mais movimentadas dos EUA, me pegou pelo pé.

Em um apartamento, seis irmãos fazem do cinema o único escape e interface com o mundo exterior. Eles recriam cenas clássicas, transcrevem filmes inteiros, constroem cenários e figurinos impecáveis com lixo e fazem da gente coadjuvante. Na figura do pai, o algoz, sequestrador dos próprios filhos, uma espécie de domador de elefantes, que prende os animais a frágeis estacas que só não são arrancadas porque os mesmos desconhecem sua própria força.

The Wolfpack é emocionante do primeiro ao último minuto e faz a gente lembrar porque ama tanto o universo extraordinário do cinema.

Para fechar essa sequência de filmes cujos personagens buscam identidade ou, pelo menos, que o mundo os assuma e respeite, está Documented. A história de Jose Antonio Vargas, nascido nas Filipinas, mas que imigrou aos EUA aos 12 anos, quando acordou em uma manhã e inesperadamente sua mãe lhe entregou uma mala e apresentou um homem que lhe levaria para o outro lado do mundo.

Na gringa, ele passou a morar com seus avós e, gradativamente, foi vivendo seu sonho americano particular. Jose se tornou um influente jornalista, ganhador do Pulitzer, prêmio máximo do jornalismo, mas que ainda assim precisava esconder parte de seus documentos das pessoas com quem convivia, para não entregar sua situação de ilegalidade.

De oprimido, Vargas vai ao ataque e decide declarar ao mundo sua história, com ajuda de alguns dos maiores jornalistas americanos e apoiado por centenas de milhares de imigrantes em condições idênticas à dele.

Afinal de contas, somos o que somos ou somos o que um papel ou as pessoas dizem que a gente é?

A resposta está em cada um desses três filmes.