A conexão entre Beyoncé, Pitty e Vincent Cassel | JUDAO.com.br

Incomodados que se mudem, o artista está aí pra incomodar

Um xerife no estado norte-americano do Tenesse acusou a presidenta honorária do planeta Terra, Beyoncé, de ter causado um tiroteio devido à apresentação politizada que emulou o grupo de resistência negra Panteras Negras durante o Super Bowl 50. Ok, o policial é um babaca, mas fica uma questão: não é esse o papel do artista, o de agitar a realidade do público e refletir o momento que a sociedade atravessa?

De alguns anos pra cá, a violência policial nos EUA cresceu, principalmente nas quebradas, e tem resultado em um aumento gritante nas execuções de suspeitos em abordagens das ditas autoridades. Muitos artistas têm se manifestado sobre a violência crescente que invariavelmente resulta na morte de jovens negros desarmados.

A diferença é que Beyoncé está acima de qualquer estrela pop viva no sentido de popularidade e carinho do público, independente de raça ou classe social. Aliás, ela fez esse show e compartilhou figurinos de luta com Bruno Mars, estrela em ascensão contínua na cena pop, que abre a tal performance.

O caso é que os discursos de luta contra o racismo e a violência institucionalizada contra o jovem negro da periferia viraram uma bandeira incômoda para muitos canais de TV e premiações consagradas pelo status quo da indústria do entretenimento. Aceitar ou não aceitar? Limitar as falas? Esse tipo de manifestação é típica desse tipo de evento, mas o tema persevera desde que Viola Davis falou em mais oportunidades para os negros no Emmy do ano passado.

Eis que veio o Grammy 2016 e história foi feita no palco da infame e múltipla premiação. Kendrick Lamar, o maior rapper vivo atualmente, promoveu um espetáculo que deve ter feito boa parte dos americanos brancos médios mudarem de canal.

As legendas da antológica apresentação do Kendrick Lamar no Grammy ficaram ótimas

Posted by Empodere Duas Mulheres on Tuesday, February 16, 2016

Se não é pra fazer isso, para que serve o artista? Alegrar a gente? Falar de amor? Também, claro, mas faz sentido uma multidão de artistas com sorrisos ensaiados na boca, como a máquina de xerox das gravadoras, que promove uma porrada sem fim de duplas sertanejas absolutamente iguais? Nada contra, mas precisavam ser produtos tão extremamente parecidos? Enfim, o máximo de debate que a música brasileira pode promover é uma escolha entre as similares Ivete Sangalo ou Cláudia Leite?

Eu sou #TeamIvete, mas isso é muito pouco.

É aí que entra a Pitty.

CANTORA ATACA MACHISMO NA TV GLOBO

A cantora Pitty tem sido fundamental no combate à cultura machista e de submissão da mulher aos padrões sociais ou de imposição da indústria cultural. Parabéns, menina!!!

Posted by Jandira Feghali on Tuesday, February 16, 2016

A roqueira baiana não se avexa quando é pra opinar, nunca se deixa levar pelo andar da carruagem, se posiciona, refuta, debate, dialoga, mas não entrega barato o que a mídia nacional espera que funcione como coro de um tom só, esteja ela no programa da Fátima Bernardes ou numa Ocupação escolar. Nada passa batido.

O caso é raro, pois não há medo de boicote a ela dentro da Globo, uma vez que nunca precisou do canal do Jardim Botânico para se fazer. Para Pitty, a presença na TV aberta é consequência de uma carreira consolidada fora dela.

Assim é também a vida de Vincent Cassel, ator francês que mora no Rio de Janeiro, mas nunca se rendeu aos convites da emissora carioca, e recentemente falou à Revista Trip sobre como o monopólio de linguagem da teledramaturgia brasileña prejudica a qualidade das interpretações e muitas vezes compromete a própria experiência artística do ator. Ele também já falou com o JUDÃO e não teve muita cerimônia para provocar tanto o Borbs quanto o espectador em suas respostas.

Vincent Cassel: "A TV aqui é tipo uma máfia”

Para o astro francês Vincent Cassel, a TV brasileira é uma máfia. Ele também critica as novelas: "às vezes estragam as atuações, as emoções são forçadas".Assista mais vídeos do #TripTV: bit.ly/trip_tv

Posted by Revista Trip on Wednesday, February 17, 2016

É pra isso que serve o artista, não? Quando a gente acha que tem uma opinião “formada” sobre algum tema, ele dá uma pincelada que faz a gente se incomodar, questionar o que pensava até um minuto atrás.

Quem não lembra do Emicida no Altas Horas? O grande ator (mesmo!) Marcos Caruso se empolgou naquele discurso de obaoba, que o Brasil é um país onde as mais diferentes raças comungam sem racismo e tal, quando o rapper fez uma intervenção antológica e de alto impacto.

Sim, a verdade ainda surpreende a gente.

No entanto, nem tudo é discurso diretamente político, a onda do artista pode ser filosófica também. Que o diga Lady Gaga, que eu só fui entender pra valer no show do mesmo Grammy onde Kendrick Lamar fez o que fez. A mina das roupas geométricas, de bife, de latas e por aí vai, homenageou David Bowie ao passo que desconstruiu o Camaleão, ele mesmo uma pessoa que fez de sua própria morte uma obra de arte.

Coragem artística é pouco neste caso, tem algo de crença em quem faz um show desses. Houve muito choramingo depois da apresentação, gente dizendo que o filho do Bowie não gostou, que os verdadeiros fãs não compraram a ideia e tal e coisa.

Daí que eu curti mesmo, afinal, o papel do artista não é também o de incomodar? E FOI UM PUTA SHOW!

https://www.youtube.com/watch?v=3fGBZhsa4VU

Para fechar essa picareta reflexão sobre o artista como espelho da sociedade, eu vou de Amy Winehouse. A inglesa, que começou a curta carreira como a maior novidade da música mundial e terminou como a loucona que garantia vida fácil aos tablóides de seu país e sites de celebridade mundo afora, quando morreu, sem intenção alguma transformou sua vida em uma grande crônica do papel do público em um mundo onde todos os holofotes estão virados para os famosos.

Todos nós matamos Amy um pouquinho e o preço que pagamos é pensar quanta música incrível ela teria trazido ao mundo se a gente tivesse se manifestado sobre a corda bamba onde ela transitava ao invés de fazer disso um espetáculo.

Meses antes de morrer, ela estava bem, sem drogas “químicas”, apenas ingerindo álcool, mas de saco cheio dos shows de Back to Black, que não lhe diziam mais nada. Tanto, que Winehouse estava formando uma banda com o produtor Salaam e Questlove, baterista do Roots. Imagina a mágica que ia sair disso!

Amy Winehouse

Pois a pressão dos fãs por mais shows do aclamado álbum pelo mundo fez coçar os bolsos do pai da cantora e do seu empresário. Amy lutou o quanto conseguiu, chegou a subir no palco e se recusar a cantar, mas não teve jeito, todo mundo queria um pedaço, todo mundo queria a doidona perto de si pra tirar uma foto e poder dizer que aproveitou “enquanto ela estava viva”.

Amy Winehouse é sua própria e maior obra, mas quem derrubou um copo de café quente nesse quadro lindo fomos eu e você, e essa é uma reflexão que fica. O artista é impactante, mas as nossas reações também causam impacto dentro da lei universal entre ação e reação.

O ótimo documentário Amy, que está no Netflix, lembra a gente disso.