A falácia da medição de audiência no streaming | JUDAO.com.br

Uma pesquisa da NBCUniversal indicou quais são as séries mais vistas no Netflix. Mas o quanto esses dados são reais e qual a importância deles?

A TV aberta, seja no Brasil, nos EUA ou em qualquer lugar do mundo em que haja algum fim lucrativo, se resume na busca pela audiência. O número de telespectadores é determinado em pontos ou em milhões de pessoas e, pronto, define-se se um programa ou uma série é um sucesso ou um fracasso.

É assim desde 1947, quando a Nielsen, ainda no rádio, divulgou o primeiro boletim de audiência nos EUA.

Esse tipo de medição sempre foi muito polêmico – afinal, quem tá por baixo, vai espernear. No Brasil, por exemplo, sempre vai e voltam aquelas campanhas pra encontrar os famosos aparelhos de medição do Ibope. Ainda assim, as grandes TVs mundiais sentam em cima desses números como se fossem a absoluta realidade.

Eis então que, na última semana, a NBCUniversal (que, como o nome entrega, tem no guarda-chuva um dos quatro grandes canais abertos dos EUA) surgiu com uma pesquisa que ~abalou multidões: os números de audiência do Netflix. Na cabeça dos executivos do canal, a pesquisa fez realmente sentido. Afinal, eles entenderam aquela história de que “o jogo virou”, que Netflix é sim um canal de televisão e, sendo um concorrente, eles precisam saber como os produtos desse novo canal se viram contra os deles.

Painel de Jessica Jones no TCA 2016

Painel de Jessica Jones no TCA 2016

Os números – obtidos por uma empresa de pesquisa de tecnologia, chamada Symphony – foram surpreendentes. Jessica Jones (que enfim foi renovada pra segunda temporada!) conseguiu 4,8 milhões de telespectadores “adultos entre 18-49 anos” por episódio, sendo a série mais assistida no período analisado. Depois veio Master of None, com 3,9 milhões, e Narcos, com 3,2 milhões.

Pra você ter uma ideia, esses números botariam Jessica Jones como a sexta série mais assistida na temporada 2014-15 da TV aberta dos EUA, perdendo apenas pro futebol americano, Empire e The Big Bang Theory, e na frente de programas como Scandal, The Voice, The Blacklist, Grey’s Anatomy e por aí vai.

Agora, você não entendeu essa do “adultos entre 18 e 49 anos”? Bom, é aí que começa o problema. Diferentemente do que o Ibope faz por aqui, a audiência deles não é separada por pontos que representam domicílios. Lá a pesquisa identifica o número de telespectadores na faixa etária mais importante para a publicidade — e foi nesses parâmetros que essa pesquisa da NBCUniversal foi tabelada. Por mais que exista um número geral de audiência, são esses, mais específicos, que depois vão ser vendidos para agências e anunciantes.

Mas, como você sabe, Netflix não tem publicidade.

Tem mais: quando falamos na medição tradicional da TV, na prática, é quase impossível saber exatamente quantas pessoas estão assistindo ao canal A ou ao canal B naquele momento. O que a Nielsen faz (assim como o nosso Ibope) é acompanhar os hábitos de uma parcela do público e, a partir desses dados, “extrapolar” pro resto das pessoas. Pode ser bem próximo da realidade? Pode ser. Agora, se essa amostragem não acompanhar bem de perto a variedades de gostos e a mudança na opiniões das pessoas, ela pode gerar um resultado completamente errado.

Como saber se foi feita uma amostragem minimamente correta pra qualquer pesquisa assim? Impossível.

Há ainda uma grande diferença em comparar um canal de TV linear, como a NBC, com o streaming. Veja: na velha televisão você tem que acompanhar uma programação e sentar a sua bunda no sofá no momento exato que o episódio vai começar. A audiência é naquele momento. Nos últimos anos, a Nielsen passou a acrescentar os dados do DVR, daquela galera que grava na TV ou no setup box pra ver depois, mas o alcance é ainda menor. Pra piorar, ainda não é considerado quem assiste pelos serviços online dos próprios canais.

Com o Netflix, você não tem horário e pode ver quando quiser. Pode ser na mesma hora que a temporada inteira foi disponibilizada, pode ser QUATRO ANOS depois disso, como no caso da primeira de House of Cards. E isso se você não assistir a dois episódios hoje, um amanhã, metade depois, oito daqui um mês...

“É um modelo de negócio muito diferente”, disse Alan Wurtzel, presidente da NBCUniversal, na coletiva anual pro Television Critics Association, quando os dados foram divulgados. “Eles querem que você assine o cheque no próximo mês”. Ok, então por que comparar? “Isso tudo é um beta. Eu acho que é válido. Eles [os números] dão uma dimensão do tamanho – se é 4,4 milhões ou 4,2 milhões, não acho que importa”.

underwood

Outra “conclusão” do estudo, de acordo com o executivo, é que depois de fazerem maratonas com as novas séries, os assinantes param com o streaming e “as pessoas vão assistir televisão da forma como Deus planejou. O impacto vai embora”.

“As pessoas vão assistir televisão da forma como Deus planejou” é um pensamento fora da realidade.

Sim, Wurtzel. É válido querer saber o tamanho do concorrente, mas a questão é você tentar enquadrá-lo dentro do formato antiquado no qual você ainda está preso. Netflix é internet, é informação. A grande diferença da web pra qualquer outra mídia que veio antes é que ela é exata. Você coloca seus parâmetros e consegue saber exatamente quantas pessoas entraram num site, de onde elas eram, pra onde elas foram, quanto tempo ficaram e o que mais interessou. Com streaming não é diferente.

Por isso, Netflix (e Amazon, e Hulu) sabe exatamente o que você viu ontem no serviço, quantos episódios seguidos foram e qual o momento exato você desistiu daquele filme chato que seu amigo disse que era legal. Não é uma pesquisa, é fato. É século XXI, enquanto a Nielsen e os canais lineares estão na década de 1990 — e no qual essa pesquisa da Symphony entrou de gaiato.

Pro Netflix pouco importa saber se Jessica Jones foi assistida 4,8 milhões de adultos entre 18 e 49 anos. A métrica é outra: QUANTAS HORAS você passou no serviço? Quanto mais tempo você ficou lá, menos tempo você passou no concorrente. Quando a conta do cartão de crédito chegar, você vai ver aquele valor e sentir que foi um gasto válido. Se não for, bom, você vai cancelar e eles vão perder dinheiro. Simples assim.

Quando uma temporada ou uma série acabam, o telespectador volta pra TV normal não “porque Deus quis”, mas simplesmente porque, naquele momento, não encontraram outra coisa que querem assistir. É um buraco que o pessoal do Netflix está tentando fechar cada vez mais, inclusive anunciando que 2016 terá o dobro de séries próprias do que em 2015. A previsão pra este ano é de lançar pelo menos 30 temporadas de séries originais live-action, 30 de séries infantis, 12 documentários, 10 filmes e 10 especiais de stand-up. São quase duas novidades únicas e exclusivas por semana, fora o que vem de outras distribuidoras.

Nem tudo vai ser sucesso absoluto, mas tudo será importante, nem que seja pra uma pequena fatia do público, em algum momento.

Ted Sarandos

Ted Sarandos

Claro que é importante ter blockbusters como Demolidor e Jessica Jones, além de saber o quanto cada programa foi assistido. Só que as motivações pra isso são um pouco diferentes.

O primeiro caso traz divulgação em outras mídias, comentários e assinantes. O segundo ajuda a entender o que você quer e o que você não quer – e, assim, eles conseguem trazer mais daquele conteúdo que te interessou, pra você ficar mais horas e horas no serviço. Você acha, por exemplo, que o Netflix tirou a nova série do Voltron do nada? Não: eles com toda a certeza identificaram um interesse pela encarnação anterior que está no serviço nos EUA, além de terem feito alguma pesquisa pra saber que os pais — que eram crianças nos anos 80 — adorariam ter a chance de ver uma nova versão com os filhos.

House of Cards, aliás, é o exemplo mais que perfeito para explicar isso: a primeira série original do serviço de streaming foi encomendada depois de identificarem que a versão original inglesa era muito assistida via Netflix nos EUA, assim como havia uma procura muito grande por produções com Kevin Spacey e dirigidas pelo David Fincher.

“Toda essa metodologia, mensuração e dados em si não refletem nenhum senso de realidade de nada do que acompanhamos”, disse o chief content officer do Netflix, Ted Sarandos, para a EW. “Deve ser porque isso de saber o número de espectadores que temos entre 18 e 49 anos não tem sentido para nós. Nós não os rastreamos. É um público direcionado pela publicidade, que não significa nada para nós. Eu não sei porque alguém gastaria tanta energia e tempo para dar algo que eu acredito ser notavelmente impreciso... Eu não entendo a metodologia disso. Os resultados são refletem nada do que rastreamos”.

Com tanto rolo assim, você deve estar se perguntando: “Por que o Netflix não divulga logo a audiência no formato que eles pesquisam e acabam com esse falatório?”. A resposta é simples: não há interesse. Eles não vendem publicidade, então não precisam dizer que são superiores a ninguém. Além disso, falar que Jessica Jones foi assistida por “10 milhões de pessoas” apenas inflaria os contratos com a Marvel, produtora e atores. O mesmo aconteceria com as séries de catálogo, como Gotham, The Flash e Arrow, por exemplo.

O formato é diferente também de serviços que se colocam como “streaming de livros”, que pagam um valor para o autor cada vez que uma publicação é lida – e que, na prática, querem que você assine o serviço, mas leia pouco por lá.

Talvez é aí que esteja o verdadeiro INTUITO da NBCUniversal com essa pesquisa. Não é saber o quanto eles apanham das séries originais, mas determinar o quanto cada série DELES liberada pro Netflix é vista. A última vez que se falou publicamente numa renovação de contrato entre as duas empresas foi em julho de 2011 e, se o acordo for de cinco anos, tá quase na hora de assinar uma nova papelada – o que inclui renegociar os preços. Sacou?

Só que, como já percebemos, essa medição aí não vai fazer ninguém no Netflix se preocupar, Wurtzel. Aliás, se alguém deveria se preocupar nessa história, é você e esse seu pensamento sem noção. :P