Eden: a gênese da música eletrônica com um toque francês | JUDAO.com.br

Daft Punk, DJs, baladas e house na Cidade-Luz dão o tom a Eden, que estreia esta semana no Brasil, retratando o início do movimento musical conhecido como French Touch

Assistir Eden foi a mais incrível e emocionante experiência cinematográfica da minha vida depois de ver pela primeira vez o Homem-Aranha de Sam Raimi nos cinemas. Eu sou um sujeito com três grandes paixões: cinema (principalmente filmes de terror), quadrinhos (meu herói preferido de todos os tempos é o Cabeça de Teia, claro) e música, mais especificamente, a música eletrônica e mais especificamente ainda, a house music.

Bom, para ilustrar, eu sou DJ há 18 anos. Comecei a discotecar com meus tenros 15 anos lá no longínquo ano de 1997, influenciado pelo meu falecido e amado primo que já era DJ desde 1990 e, como éramos vizinhos, cresci sentindo os azulejos da cozinha vibrando com o grave e ouvindo suas mixagens enquanto tentava fazer a lição de casa.

Aquele 97 foi um ano de transição, pois eu estava no primeiro colegial (ainda era chamado de colegial na época), mudei para uma escola pública e tinha que tomar busão para ir estudar, estava descobrindo as baladinhas (comecei a frequentar as matinês da Over Night, Toco, Sound Factory, tudo ali na ZL de São Paulo), me interessando pelas garotas, minha voz ficando mais grave e com pêlos nascendo em partes do meu corpo que não havia antes. E naqueles tempos eu fui arrebatado pela cena eletrônica e por nomes como The Prodigy, The Chemical Brothers, Underworld e... DAFT PUNK!

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Get Lucky? :)

A primeira vez que vi os clipes de Around the World, dirigido pelo Michel Gondry, e Da Funk, pelo Spike Jonze na MTV, foi algo surreal. Aquela música da dupla Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Cristo me alucinou de um jeito que tive a certeza de que era aquilo que queria tocar, que iria curtir para o resto da minha vida, ainda mais depois de cabular aula certo dia só para ir na Saraiva Mega Store do Shopping Ibirapuera comprar o CD do Homework com minha mesada (custou R$ 19,90, ainda me lembro). Junto da dupla, toda uma efervescente cena da house music francesa surgia nos arredores de Paris, misturando house, disco music e garage, dando início a um movimento chamado French Touch e um subgênero chamado french house, da qual virei fã de imediato.

Nomes importantes despontaram naquele fértil celeiro musical, como Air (que você pode conhecer pelas trilhas sonoras dos filmes da Sofia Coppola), Cassius e vejam só, David Guetta e Bob Sinclair, que SIM, faziam música boa no começo de carreira. Meu primeiro vinil, ou 12”, ou bolacha, de um single foi adquirido exatamente um ano depois, em 1998, e foi uma música chamada Music Sounds Better With You, do Stardust, um trio formado por uma das metades do Daft Punk, o Thomas, lançado por um selo francês chamado Roulé (e que tem o clipe também dirigido por Gondry).

Toda essa introdução sobre minha vida pessoal para explicar o porquê de Eden, que estreia esta semana em circuito reduzido aqui no Brasil, ter sido essa experiência toda que comentei. Geralmente, quem não gosta de música eletrônica tem um desdém gigantesco e um preconceito do diabo com o gênero. Ainda mais no campo nerd, quadrinhos, filmes, etc, que é amplamente dominado por roqueiros e fãs do metal. Quem curte rock já teve a oportunidade de ver inúmeros filmes e cinebiografias de astros da música do gênero, ou do soul, do blues, do jazz (até porque eles todos são estilos musicais muito mais velhos e com um background infinitamente superior). Agora imagine você ser fã de french house, e da house music em geral e ver pela primeira vez no cinema um longa sobre o que você gosta, escuta e toca há mais de metade da sua vida? Deu pra sacar, né?

Do paraíso ao inferno

Eden é um drama ficcional dirigido por Mia Hansen-Løve e escrito pela diretora e seu irmão Sven (em quem a história é levemente baseada), que conta o início do movimento French Touch, tendo como gancho a ascensão, apogeu e queda de Paul (Félix de Givry), um entusiasta do Garage no início dos anos 90 (estilo musical que surgiu da fusão da disco com o house em um clube de NY chamado Paradise Garage, cortesia de um DJ chamado Larry Levan), que torna-se DJ e promoter de festas em Paris, formando uma dupla com seu amigo, chamada Cheers. Como pano de fundo vemos o surgimento do Daft Punk, hoje o maior expoente do house francês e conhecido por praticamente todo o mundo, ou por causa do hit One More Time no começo dos anos 2000 ou pelo chiclete em parceria com o Pharrell Williams e Nile Rodgers, Get Lucky, que tocou à exaustão entre 2013 e 2014.

A despeito da ridícula discussão de que DJ não é músico e só “aperta botão”, por mais roqueiro ou metaleiro xiita que você seja, se você já teve banda e por algum momento na sua vida o sonho de viver disso, vai se identificar para caralho com Paul. Ainda no colégio, em 1992, ele vai a uma rave dentro de um submarino e encanta-se com uma música mecânica mais harmoniosa, com assovios (Sueno Latino, só para constar) e ali foi plantada toda a sementinha do seu gosto musical vindouro. Foi durante aqueles tempos também que ele conheceu Thomas (Vincent Lacoste) e Guy-Man (Arnaud Azoulay), ainda jovens, que mais tarde explodiriam como Daft Punk após lançarem Da Funk, tocada pela primeira vez em uma festinha à fantasia na casa dos pais de Thomas (que mora aqui no Brasil e tem uma pizzaria na Bahia, sabia disso?), momento histórico devidamente registrado em Eden. Aquilo era “genial”, era a “disco music moderna” como dizem entusiasmados.

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A versão de Eden para o Daft Punk, antes da fama

Nosso “herói” não quer saber de outra coisa além de música, de discotecar. Sua mãe sempre lhe alertando sobre os problemas das drogas (no caso o ecstasy) e perguntando se ele nunca iria “arranjar um trabalho”, “focar-se em seus estudos” e essas coisas que todo músico já deve ter ouvido em algum momento. Em certa altura do campeonato, sua tese em literatura é completamente abandonada enquanto ele mergulha mais profundamente na carreira e em todos os problemas inerentes ao processo: Paul nunca tem dinheiro para nada, vivendo da subsistência em um apartamento alugado (não tem água quente, mas compra camisetas Paul Smith – questão de prioridades, como diz) e todos os seus gastos são na noitada e com cocaína.

Com o boom do house francês, Paul e o parceiro vivem os momentos de vacas gordas tocando seu garage em festas e clubs que foram marcos em Paris, como a Respect, e viajando em turnês na América para tocar em Chicago, berço da house music, e no MoMa PS1 em Nova York. Em paralelo ele mantém um relacionamento com Louise (Pauline Etienne) que aos poucos vai se deteriorando pela nula ambição do jovem e pela falta de estrutura que ele proporciona, até o ponto da ruptura.

Na metade dos anos 2000 a coisa começa a degringolar para Paul, com a queda de popularidade do french house e o surgimento forte do electro, que dominava os clubes parisienses. Há uma cena das mais verossímeis quando o dono da boate em que o Cheers se apresenta os repreende, dizendo que o clube do outro lado da esquina tem o dobro de fila na porta e que eles deveriam tocar outros estilos mais “populares”, e não ficar só tocando “garage velharia”. “Mas também não precisa ser uma coisa David Guetta”, ele brinca. Daí entra aquela velha discussão sobre a prostituição musical por dinheiro e não abandonar seus princípios, seu som, sua alma, que qualquer músico ou banda também sofre, assim como, veja só, um DJ.

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Paul, fazendo o que mais ama

A terceira parte do filme é quando Paul está literalmente quebrado, atolado em dívidas, sem crédito na praça, suas festas já não levam mais ninguém, está viciado em cocaína, com relacionamentos fúteis com “marias-picapes” enquanto todos à sua volta estão em uma situação muito melhor, com família e filhos, e lhe resta tocar em casamentos (quem nunca?) e finalmente, ter que abandonar a música, seu sonho, sua paixão, para arrumar um emprego enfadonho qualquer de escritório. Essa reviravolta também marca o momento em que Paul se matricula em um curso livre de literatura tentando agarrar um fio solto abandonado lá atrás em sua vida, em busca de redenção.

Perto de seu encerramento, uma cena é particularmente tocante, quando com seus trinta e tantos anos, Paul vai a uma festa e reencontra seus velhos amigos, incluindo Thomas e Guy-Man (que, em uma piada recorrente, sempre são barrados em todas as festas por ninguém reconhecê-los, já que vivem atrás de seus capacetes robóticos), nesta altura do campeonato, responsáveis pela trilha sonora de Tron – O Legado, ganhadores do Grammy e mais milionários ainda depois do sucesso estrondoso do seu último álbum, Random Access Memories (aquele da Get Lucky). Na cabine, há uma garota discotecando, sozinha com seu Macbook. A introspecção de Paul naquela cena, com zilhões de coisas passando em sua cabeça, desde as lembranças dos bons momentos até a culpa pelo “tempo perdido” é o resumo de Eden e da vida ao redor da música longe do glamour e do estrelato, diante da difícil tarefa que é crescer e amadurecer e ter de deixar coisas que amamos para trás. “Um emprego e uma namorada”, já dizia Raul Seixas em Meu Amigo Pedro.

Mas tirando sua última parte mais melancólica, Eden é diversão, energia, sorriso no rosto, pés batendo na sala de cinema. A trilha sonora é absurdamente fantástica para todo e qualquer fã de house music – e da música eletrônica em geral. Desde o primeiro take, no qual ao fundo está tocando o clássico Plastic Dreams do JayDee, passando pelas próprias músicas do Daft Punk e maravilhas do house e garage como Promised Land de Joe Smooth e Finally do Kings of Tomorrow (sem dúvida dois dos momentos mais mágicos do filme, quando as faixas são tocadas em suas respectivas baladas) até chegar aos créditos com a Happy Song de Charles Dockins, mostrando que house e a e-music são isso: alegria, festa, dançar e esquecer que existem problemas enquanto as batidas entram pelo seu ouvido, passam pelo seu cérebro e aquecem seu coração.

Eden_04Inclusive o filme demorou tanto tempo para ser lançado pela dificuldade e custos altos em licenciar todas as músicas. Só depois que o próprio Daft Punk autorizou o uso pelo valor mais baixo possível, os outros artistas acabaram se juntando a eles. Na trilha também temos Frankie Knuckles, Byron Stingily, Masters at Wotk, Octave One, Crystal Water e Kerry Chandler, entre muitos outros. Uma verdadeira aula! Vale também pela participação especial de grandes nomes do estilo no filme, como Terry Hunter, Tony Humphries, Arnold Jarvis e India, interpretando eles mesmos – além da tonelada de easter eggs para os iniciados, que vão desde adesivos de labels colados no armário da cozinha até bags de lojas de discos, pôsteres de festas e camisetas de produtores.

Você que não gosta de e-music e torce o nariz para o gênero, ao assistir Eden, poderá achá-lo extenso e cansativo, mas com certeza, se gostar de música em si que, independente do estilo, é uma linguagem universal, etérea, uma paixão incondicional...então entenderá o espírito e será contagiado. Não conseguiria escrever esse texto imparcialmente e sem carregá-lo de emoção, mas eu espero que com isso, e com esse filme, que algumas barreiras e preconceitos sejam quebrados, e que eu desperte a curiosidade de um ou outro sobre o longa ou mesmo a história da música eletrônica. Uma música do produtor Eddie Amador diz em sua letra: “not everyone understands house music, it’s a spiritual thing, a body thing, a soul thing” (nem todo mundo entende a house music, é uma coisa espiritual, do corpo, da alma). É fato, e o trabalho de Mia Hansen-Løve ajuda um pouco a explicar esse sentimento.

Daqui uns vinte, trinta anos, Get Lucky estará tocando na festa de casamento dos seus filhos, assim como hoje seus pais dançam animadamente KC & The Sunshine Band, Donna Summer, Kool & The Gang e Bee Gees e lembram-se da época da discoteca. Eden é o primeiro filme que se propõe a contar como surgiu a fagulha disso tudo, e humaniza a música mecânica, feita por computador, por robôs, e traz para perto a figura do DJ, que para muitos é um “tocador de música”, mas por trás dos fones e dos toca-discos, é um sujeito apaixonado pelo que faz, que batalha como qualquer músico ou membro de uma banda por aquilo que acredita, tentando viver na corda bamba entre suas felicidades e frustrações, enquanto sua principal missão é somente fazer você dançar.