Durante umas boas décadas, Hollywood tinha uma estratégia curiosa para os diretores que sofriam das tais “diferenças criativas” mas não podiam pular fora de um projeto
Imagina só um mundo sem internet, onde praticamente todas as informações a respeito dos bastidores de um filme não voavam por aí em tempo real. Agora imagina só um diretor de cinema morando num mundo assim, mas um que não é um Steven Spielberg ou Stanley Kubrick da vida. Um diretor contratado pra dirigir um filme que chega lá pra trampar empolgadão e aí, num passe de mágica, descobre que vai ter que ser do jeito que os produtores querem e que ele só vai ter que executar. Simples assim. “Não, não queremos as suas ideias, queremos apenas os seus braços”.
Preso por um contrato muitas vezes PREDATÓRIO, ele nem teria como soltar pro mundo um comunicado falando das tais “diferenças criativas” e abandonar o projeto. Então, ou paga a multa ou engole a sua visão criativa e faz do jeito que mandaram. Mas correr o risco de ter uma BOSTA qualquer no currículo, como fazer?
Chama o Alan Smithee.
Tudo começou em 1969. Até aquele momento, o DGA (Directors Guild of America), sindicato dos diretores lá dos EUA, não permitia que os cineastas assinassem uma obra usando um pseudônimo. A ideia original era justamente impedir que os produtores forçassem a barra e colocassem qualquer zé mané no cargo. Além disso, não dava nem pra pedir pra não receber créditos pelo filme, porque o DGA também obrigava que o nominho do sujeito estivesse lá, já que “o diretor é a principal força criativa por trás de um filme”. Justo. Mas complicado, né?
Aí, veio o faroeste Só Matando (Death of a Gunfighter) e todas as tretas que rolaram nos bastidores entre o protagonista, Richard Widmark, e o diretor Robert Totten. Os caras não se entendiam sobre quais seriam os rumos da trama, e eis que o ator usou do seu prestígio para que ele fosse demitido e substituído por Don Siegel. O ponto é que Siegel ficou incomodado na hora de alinhar os créditos porque, enquanto ele rodou no máximo durante 10 dias, seu antecessor gravou um monte de coisas durante quase um mês, e muito deste material entraria com certeza na edição final. Na verdade, acabaria sendo minimamente 50% do trampo de cada um.
Só que, pra complicar um pouco mais, Siegel afirmou que tanto durante o seu trabalho quanto durante o de Totten, era Widmark que resolvia mandar na porra toda, dizendo o que se podia ou não fazer. E aí, com o filme devidamente finalizado, nem Siegel e nem Totten quiseram ter seus nomes assinando a cacilda da produção. O caso foi levado a um painel de especialistas do DGA, que analisaram as evidências e concluíram: não, Só Matando não representava a “visão criativa” de nenhum dos dois. Logo, era hora de recorrer ao tal pseudônimo.
A primeira ideia era que fosse Al Smith, mas os representantes do sindicato se opuseram porque era um nome comum demais, que outros diretores até já tinham usado como seus “nomes artísticos”. Então, o Smith ganhou primeiro um E e depois dois no final – enquanto o Al se tornou Allen (que, mais tarde, virou o Alan que a gente conhece mais comumente). Existe até uma lenda urbana sobre Alan Smithee ser um anagrama para “the alias men”. ;)
Quando o primeiro filme de Smithee saiu, vejam vocês, a crítica adorou. Mas ninguém conhecia o sujeito e, bom, claro que ele foi tratado com um novo e promissor nome da direção. Roger Ebert, do Chicago Sun-Times, afirmou que “o diretor Allen Smithee, um nome que não me é familiar, permite que a história se desenvolva naturalmente”.
A estratégia foi então utilizada retroativamente para creditar Jud Taylor, que teve problemas no desenvolvimento de Fade-In, de 1968, com Burt Reynolds no elenco. “Aquele foi um sinal para a indústria do ponto de vista dos direitos criativos, mostrando que o produto final foi de alguma forma adulterado”, afirmou o próprio Taylor, para a revista do DGA, ao aceitar o Robert B. Aldrich Achievement Award em 2003.
Para fazer uso de Alan Smithee, bastava requerer uma audiência com o painel do sindicato e provar sua insatisfação com o produto final e o fato de não ter exercido controle criativo sobre a obra. Mas o combinado seria que, desta forma, se fosse creditado como Alan Smithee, o diretor não podia discutir publicamente as circunstâncias da treta ou nem mesmo, em qualquer momento, requerer o crédito pela obra em entrevistas em afins.
O professor da Universidade de Cornell Jeremy Braddock, que editou o livro Directed by Alan Smithee, explica em entrevista pra Vice que o processo não é assim tãããão simples quanto parece. “A DGA julga cada requisição do uso do pseudônimo individualmente; depois, negocia com a produtora do filme, o que pode resultar no diretor perdendo qualquer royalty ou lucro futuro com sua obra”, conta.
Vejamos o caso de Tony Kaye, diretor de A Outra História Americana, por exemplo. Pistolaço com a influência de Edward Norton sobre o estúdio e, portanto, sobre o resultado final do filme, ele chegou a gastar belos US$ 100 mil durante o processo de edição com anúncios na imprensa de Los Angeles, escancarando o assunto. Portanto, quando tentou renegar o filme e colocar a “culpa” nas costas de Smithee, o DGA falou que a CONTENDA ficou pública demais e que “tentar se distanciar seria inútil”.
De qualquer maneira, uma busca simples no IMDb revela, na página de Alan Smithee, exatos 96 resultados, incluindo aí filmes como Hellraiser IV – Herança Maldita (1996) e Atraída Pelo Perigo (1990), com a Jodie Foster, sendo usado por nomes diversos como Dennis Hopper, John Frankenheimer e Kiefer Sutherland. Quando Duna, a versão de 1984 de David Lynch, foi para a TV, em uma versão estendida e com edição diferente, o cineasta odiou o resultado e pediu que Smithee fosse creditado como diretor – enquanto o seu trampo de roteiro foi para um certo Judas Booth (nome que mistura Judas Iscariotes e John Wilkes Booth, o assassino de Abraham Lincoln).
“Os diretores começaram a ter mais liberdade para fazer os filmes, mais liberdade para se estabelecerem como artistas”, explica Braddock. “Isso também significou que o nome deles podia acumular valor ou ser ligado a uma produção comprometida ou ruim. Então, comercialmente, o nome do diretor começou a ser usado como ferramenta de marketing”.
Em 1997, rolou quase que uma aposentadoria de Alan Smithee com o lançamento de Hollywood – Muito Além das Câmeras (Burn, Hollywood, Burn), uma sátira na qual um jovem diretor (Eric Idle) descobre que não pode renegar um filme merda que fez. O motivo? Ele se chama Alan Smithee DE VERDADE. A grande ironia aqui, do tipo que fez o nome começar a cair lentamente em desuso, é que o resultado da comédia foi tão, mas tão ruim, que seu diretor resolveu se distanciar dela e solicitou ao DGA a utilização do pseudônimo. O resultado é que Alan Smithee é o diretor do filme sobre Alan Smithee.
De qualquer maneira, o que não falta por aí é gente AINDA usando Alan Smithee e até mesmo novas variações, tipo Alan Smithee Sr. (Ivan Raimi), Alan Smithee Jr. (Sam Raimi), o casal Alan & Alana Smithy (roteiristas de Filhos da Escuridão), inclusive fora da jurisdição do DGA e fora do mundinho do cinema. O roteirista de quadrinhos D.G. Chichester, por exemplo, descobriu que seria substituído do título do Demolidor lá em 1995, mas que contratualmente ainda teria que entregar cinco edições do gibi. Então, entre os números 338 e 342 de Daredevil, estava lá, bonitinho, o roteirista devidamente creditado como Alan Smithee. Que cara mais versátil, não? Ele dirige filmes, escreve gibis e até cuida da direção de videoclipes, tipo I Will Always Love You (Whitney Houston), Digging the Grave (Faith No More), Some Kind of Monster (Metallica), Reunited (Wu-Tang Clan), Lose My Breath (Destiny’s Child), Juicebox (The Strokes) e Hunting for Witches (Bloc Party).
Alan Smithee, no entanto, tem lá seus primos em Hollywood, porque outros diretores resolveram usar seus próprios pseudônimos para esconder a autoria deste ou daquele filme, seja por conta própria, seja com autorização do DGA. Blake Edwards, diretor demitido de Cidade Ardente (1984), preferiu não seguir nem com o crédito de roteirista, usando o pseudônimo Sam O. Brown, uma brincadeira com S.O.B., seu filme de 1981. David O. Russell não gostou de Amor por Acidente (2015) e virou Stephen Greene; Supernova (2000) deu bosta com Walter Hill e ele preferiu ser creditado como Thomas Lee; e até Paul Verhoeven, puto da vida com a edição que seu Showgirls (1995) recebeu na versão pra TV, ganhou o pseudônimo de Jan Jensen.
“O jeito de não precisar usar Alan Smithee acaba sendo mesmo fazer filmes de baixo orçamento”, afirma o diretor Rick Rosenthal, que também fez uso do expediente no vergonhoso Os Pássaros 2, continuação do clássico de Hitchcock, para a Vice. “No momento em que um diretor falha, as asas dele são cortadas. Fica muito mais difícil manter o controle que você tinha antes de um filme fracassar”.