Angra, Megadeth e esse nosso eterno complexo de vira-lata | JUDAO.com.br

O brasileiro Kiko Loureiro, do Angra, será o novo guitarrista do Megadeth – mas esqueça a nacionalidade do sujeito por um minuto: ele está lá porque é um PUTA músico. É difícil entender isso?

E em plena véspera de feriado, nesta quinta-feira (2), eis que somos surpreendidos com o anúncio oficial de que o Megadeth, uma das mais representativas e cultuadas bandas do heavy metal mundial, tem um novo guitarrista (que estava no centro dos boatos há semanas, o que não torna a coisa tão surpreendente assim). Curiosamente, no entanto, a notícia se torna rapidamente destaque não apenas nas redes sociais, mas também em publicações de maior alcance, grandes portais de notícias e jornais brasileiros, do tipo que não costumam cobrir o mundinho do rock pesado com frequência. O motivo talvez esteja no fato de que o tal guitarrista, senhoras e senhores, é brasileiro.

A esta altura, claro, você deve saber que o tal músico, que chega com a missão de gravar o próximo disco da trupe liderada por Dave Mustaine, é Kiko Loureiro, um dos comandantes das seis cordas à frente do Angra. No site do Megadeth, Mustaine conta que conheceu Kiko numa sessão de fotos para uma capa da revista japonesa Burrn!, especializada em metal. Embora não soubesse quem o brasileiro era, rapidamente sacou que ele devia ser bom, porque a publicação o tratava com grande reverência – afinal, o Angra ainda é uma banda enorme em território japonês.

“Desde então, descobri o guitarrista virtuoso que ele é e me sinto encorajado por sua profundidade e talento”, diz Mustaine, completando: “Poucos integrantes do Megadeth têm o mesmo tipo de sentimento e habilidade que o Kiko tem”. Levando em consideração a fileira de grandes nomes que passaram pelo Megadeth, cara, isso é um baita elogio.

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O interessante desta história foi ver a reação dos fãs no Facebook, no Twitter e afins – porque, se grande parte deles elogiaram a decisão, outra fatia considerável também reclamou um bocado. E com base em um argumento que não faz o menor sentido: Kiko é brasileiro. “Ah, não. Que fim de carreira. Megadeth contratando guitarrista brasileiro? Putz. Mustaine no fundo do poço”. É, sim, comentário verdadeiro.

Vamos deixar de lado o fato de que o Kiko é nosso conterrâneo, apenas por um minuto. Pensa comigo. Mustaine já tocou no Megadeth ao lado de um cara como Marty Friedman, por exemplo, que é um guitarrista genial, referência para o instrumento, colunista de revistas especializadas, enfim. No lugar que outrora foi ocupado por Friedman, alguém tem dúvidas de que o xerife da banda só arriscaria colocar um sujeito tão talentoso quanto? Yep. Kiko Loureiro foi escalado para a missão porque consegue dar conta dela. Porque é extremamente habilidoso, um exímio guitarrista, músico exemplar. Ele está lá por suas técnicas com a guitarra. E não por sua nacionalidade. Não porque é brasileiro. Subestimá-lo assim, de maneira tão ignorante, é a prova de que o típico complexo de vira-latas que costuma acometer os brasileiros de tempos em tempos volta a atacar.

KikoLoureiro-DaveMustaineEntenda a lógica: “ele é brasileiro. Não tem como ser tão bom quanto um gringo. Porque tudo que é do Brasil é uma bosta, é um lixo, é tudo cagado”. Sacou? Da mesma forma que eu não acho que devemos dizer que um filme / banda / série de TV / animação / gibi deve ser automaticamente elogiado apenas por ser brasileiro, o inverso é igualmente verdadeiro. É muito legal ver um brasileiro mostrando o seu talento, dando as caras lá fora, mas eu acho a decisão do Mustaine acertada porque sei do talento do Kiko. Independente do camarada ser brasileiro, japonês, cubano, irlandês, venezuelano, sueco, tanto faz. Ufanismo é um porre, mas pensar em si mesmo como o refugo do mundo é igualmente pentelho.

(E nem seria a primeira vez que Mustaine se interessa pelo talento dos nossos guitarristas, já que Pepeu Gomes confirma a “lenda urbana” de que foi convidado para integrar o Megadeth)

Compreendo que alguns mais ácidos digam que não apoiam a mudança porque não gostam do Angra e, portanto, do estilo do Kiko. “O Megadeth é thrash metal, o Angra é power metal, não combina”. Perfeito. No caso do Angra, eu mesmo prefiro o estilo do Rafael Bittencourt, o outro guitarrista do grupo, que o do próprio Kiko – que acho técnico demais, um tanto piruliteiro, masturbatório. Mais do que respeito este argumento. Só que discordo. Porque aí se esconde apenas uma meia-verdade, isso pensando apenas no Angra de hoje, que vem sofrendo mais influência do metal progressivo.

Escute discos diversificados como Holy Land (1996) ou Temple of Shadows (2004) para entender a extensão das referências do músico – que vai da música clássica ao forró, passando pela intrincada guitarra flamenca. Se não acredita, tudo bem. Esqueça o Angra e ouça os discos-solo do Kiko. Recomendo fortemente No Gravity (2004) e Universo Inverso (2006). Duas verdadeiras aulas de diversidade musical, executadas com inteligência e muito bom gosto. Ao final de cada uma delas, vai ficar claro que ele leva qualquer música do Megadeth facilmente no bico.

“Ih, mas ele é um mala”, soltou um. “Putz, não sei quem vai demitir quem primeiro”, brincou outro. É, a questão a respeito do ego e do gênio forte do Kiko é algo que escuto há muitos anos, nos corredores do mercado do heavy metal brasileiro. Tenho fontes bastante seguras, que preferem não se identificar, que asseguram que ele não é das pessoas mais fáceis de se lidar, que já presenciaram casos de antipatia com fãs, com equipe. No meu caso, tive a chance de entrevistá-lo apenas uma vez, pessoalmente, em estúdio, e foi excelente. Educado, simpático, profissional. Agora, seja ele um pentelho arrogante ou não, vá, vamos combinar duas coisas? 1) isso não muda o talento que ele tem, vide parágrafo acima; 2) isso não significa em absoluto que teremos uma batalha de egos com Dave Mustaine, uma personalidade também bastante difícil e controversa.

A situação toda me parece absolutamente natural. Kiko vive oficialmente com a esposa há três anos na Califórnia, certo? Convidado para participar de um tributo a Randy Rhoads, o saudoso guitarrista de Ozzy Osbourne, acaba se aproximando de David Ellefson, atual baixista do Megadeth. Quando Shawn Drover (bateria) e Chris Broderick (guitarra) anunciaram que estavam saindo, Kiko estava a meio caminho andado do posto. O mesmo pode se dizer do novo baterista, Chris Adler, do Lamb of God, que já tinha se declarado fã do Megadeth em algumas muitas ocasiões.

O fato é que Kiko e Adler são, digamos, músicos contratados. Não como músicos de estúdio, vá, aqueles que só vão, gravam sua parte, são pagos e somem. A dupla pode até colaborar nas composições e tal mas, a exemplo de Ellefson, eles não tomam a palavra final. Quem decide as paradas, quem é o dono da bola, é Dave Mustaine. Ele é o Megadeth. E não tenho dúvidas que na hora de fechar qualquer contrato, isso fique BEM claro.

Depois de uma série fortíssima de novos discos, como United Abominations (2007), o brilhante Endgame (2009) e o igualmente bom TH1RT3EN (2011), veio o questionável Super Collider (2013). Era de se esperar que, questionado pela crítica e pelo público, Mustaine se sentisse tentado a mudar a formação do time – que vinha mantendo um recorde histórico por ser a primeira equipe, desde Cryptic Writings (1997), a não mudar com relação ao álbum anterior. Eis o ponto. Mustaine vive trocando os integrantes que tocam ao seu lado. Periodicamente, rola uma limpeza. A chance de que Adler e Kiko não durem até o próximo disco, depois deste vindouro ainda sem nome, é gigantesca. E tudo bem. Porque agora, neste exato momento, tudo que Dave Mustaine precisa é sangue novo.

Até porque, gente, da mesma forma que Adler, Kiko Loureiro está em excelente fase. Acabou de lançar, com o Angra, o vigoroso e poderoso Secret Garden, melhor e mais consistente disco do grupo em uma década. Afiadíssimo. Aliás, em comunicado oficial, o Angra manda avisar que Kiko continua no grupo – do qual é sócio junto com o Rafael e com o Felipe (Andreoli, baixista). “É impossível o Kiko deixar a banda”, crava o empresário do grupo, Paulo Baron, em papo com o JUDÃO. “Estas especulações não existem”. Da mesma forma, Baron garante que a agenda de shows da turnê do novo disco em todo o mundo está mantida – o que inclui o aguardado show no Rock in Rio ao lado da musa Doro Pesch e da lenda Dee Snider (Twisted Sister). Todos os integrantes do Angra tiveram pelo menos duas reuniões e o que ficou definido, até o momento, é que Kiko vai apenas gravar o novo disco do Megadeth e os planos da turnê do álbum com Mustaine e cia. estão previstos apenas para o ano que vem.

“Estamos todos muito felizes e acreditamos que toda esta mídia que está se gerando em torno da notícia só vai acrescentar nos shows do próprio Angra”, completa Baron.

“Uau! Que orgulho!”, diz Rafael, a respeito da contratação do amigo. “Conheço o Kiko há muitos anos e sei que ele merece mais do que ninguém esta grande oportunidade. Digo sempre que temos uma relação de irmãos e, sendo assim, desejamos sempre o melhor um para o outro”. O parceiro de Kiko vai além e afirma que esta é uma grande conquista para o metal nacional também. “É algo que todos nós devemos comemorar como uma etapa épica que se inicia. Será bom para o Angra e para todas as bandas da cena brazuca, pois atrairá atenção e visibilidade para o talento dos músicos brasileiros em geral”. Um tanto de exagero, eu diria. O que dá pra dizer, no momento, é que a chegada de Kiko Loureiro a uma banda que atrai tanta atenção pode, isso sim, abrir os olhos e ouvidos do mercado americano ao tipo de metal que o Angra faz – já que o power metal/metal melódico tem pouca penetração por lá. Está aí uma chance de ouro para o futuro de sua banda original.

Tudo que o Megadeth precisava era de um bom guitarrista para suprir as necessidades de Mustaine. Conseguiram um ótimo, que se junta a um ótimo baixista e a um dos bateristas mais surpreendentes de sua geração. Este é o resumo da ópera. Quem quer ouvir boa música, deveria estar celebrando. Seja fã de Kiko Loureiro ou não.