E eu não digo isso só porque eu prefiro assistir a filmes numa tela grande, com um puta som, numa sala feita especialmente pra isso. É porque o filme foi FEITO pra ser visto nos cinemas.
Já entrevistei vários produtores, roteiristas e diretores Brasileiros sobre esse lance de streaming / on demand VS. sala de cinema / tela grande / som alto e a resposta, quase que unânime, é que o que importa é que o filme seja visto, a mensagem seja passada, independente de onde — um argumento absolutamente irrefutável pra quem faz (ou tenta fazer, na verdade) cinema num país como o nosso.
Michael Bay, quando veio ao Brasil divulgar aquele sugador de almas chamado Transformers 5, foi perguntado sobre as mesmas coisas durante a coletiva de imprensa, afirmou que “isso vai machucar muito a arte de fazer cinema. Acho triste que muitas crianças estejam comprando a ideia de ver filmes assim. A experiência compartilhada que o cinema proporciona é fora do comum. Você não consegue sentir a experiência completa, os sons, a explosão de cores [numa tela pequena]. Eu espero que isso nunca morra”.
Steven Spielberg do mundo invertido, o diretor tem toda razão do mundo por querer que seus filmes sejam vistos na melhor e maior tela, com o mais alto e mais claro som. Não que isso ajude em qualquer coisa pro espectador, mas ele, enquanto CINEASTA, alguém que conta (ou, enfim, tenta contar) histórias através de imagens, também tem um argumento que é impossível de discutir.
Sofremos sim com os preços dos ingressos, a localização dos cinemas que muitas vezes incluem um preço bem salgado de estacionamento na matemática, a forçada de barra que são as sessões em 3D, aquela coisa de filmes legendados e dublados e, a cereja do bolo, a falta de educação das pessoas com as quais você vai dividir aquelas cerca de duas horas. Ainda assim, pessoalmente, acredito que nada supere a experiência de ASSISTIR a um filme num lugar montado especialmente pra isso.
E, mais uma vez, Aniquilação volta ao centro de uma discussão sobre cinema poder ser cinema, dessa vez, porém, independente da história que conta e sua qualidade: é uma questão de intenção artística.
Assisti ao novo filme de Alex Garland pela primeira vez num iPad Mini. O aplicativo que o Netflix disponibiliza para jornalistas assistirem aos seus conteúdos com antecedência não gosta muito de coisas como Apple TV ou Chromecast e, acredite, essa era a melhor opção disponível pra mim naquela madrugada.
Fiquei impressionado, independende disso, com o visual criado pelo diretor a partir do que ele chamou de “sonho” que foi ler o livro de Jeff VanderMeer. Mais ainda, entrei numa espiral de pensamentos sobre o filme e o que ele significava, pra mim, que já está na sua segunda semana — tal qual A Forma da Água, tou até revendo amizades e relações profissionais baseado no que dizem sobre o filme, por exemplo.
Procurando textos sobre o filme pra ler, fui impactado por essa dissertação maravilhosa, enorme e recheada de spoilers escrita pela sensacional Priscila Page para o Birth.Movies.Death. Tive de ler umas duas vezes. Da primeira, o que mais me chamou à atenção foi a quantidade de coisas que ela cita no texto e que eu simplesmente não vi, do verbo enxergar mesmo. A casa da Lena no meio da floresta, a tatuagem do soldado que passa pra Anya e pra Lena, os cortes no braço da Josie de onde começam a brotar flores, o crânio humanoide da cabeça do urso, entre tantas outras coisas, passaram absolutamente despercebidos pelos meus olhos. “Corrupções da forma, duplicações da forma, ecos”... Muita coisa importante pro que o filme se propõe acabou passando.
Sabendo o que procurar, consegui ver essas coisas na segunda vez que assisti (e até discordo sobre a casa da Lena na floresta), dessa vez numa TV de LED de 46”. Mas será que eu teria deixado passar, se tivesse visto numa tela gigantesca, esse tipo de coisa que exemplifica tão bem a ideia de “show don’t tell”?
Depois de 25 anos na Fox, Jim Gianopulos chegou na Paramount pra tapar os buracos que dominavam o barco do estúdio depois de Ghost in the Shell — e que não apareceram ali só pelas falhas em bilheterias, mas também por conta de calotes de empresas chinesas e enfim. Vendeu todos os direitos de The Cloverfield Paradox e os de distribuição internacional de Aniquilação pro Netflix e começou a dar um jeito nas coisas. Sentido fez, como já discutimos aqui, se levarmos em conta o que o público tem esperado dos filmes que assiste. Mas o custo pode ser grande demais: a existência do cinema como, bom, cinema.
Alex Garland disse, em entrevista ao Collider, que se sentiu decepcionado com a decisão da Paramount. “Tela grande e pequena são muito próximas, mas você enquadra as imagens de maneira diferente e lida com o som, música e efeitos de outra maneira” contou ao Times. “Eu espero [que as pessoas curtam o filme]. Mas eu sei que quando a equipe que fez Aniquilação tava trabalhando no final, todas as conversas eram sobre estruturar para uma experiência imersiva, que na tela grande seria natural”.
Nós fizemos o filme para a tela grande. Há muita coisa que eu poderia ter feito diferente. Teria filmado literalmente de outra maneira, um outro processo, se era isso que estavam querendo
“Não tem nada a ver com os serviços de streaming, nada a ver com tela grande vs. pequena”, afirmou o diretor ao Metro, que considera Handmaid’s Tale o melhor drama que assistiu nos últimos tempos. “Há muitas coisas realmente boas saindo na Amazon, Netflix, Hulu, você escolhe. Isso é sobre a intenção que é fazer um filme para o cinema e ele não ir pro cinema. Porque é isso que você tá esperando e filmando”, continua o diretor, que não teve nenhum tipo de poder de decisão no acordo entre a Paramount e o Netflix. “Por um lado é legal e sensacional que esses serviços estejam dando às pessoas espaço para fazer coisas realmente originais, provocativas e desafiadoras (...) [Mas] Nós fizemos o filme para a tela grande. Há muita coisa que eu poderia ter feito diferente. Teria filmado literalmente de outra maneira, um outro processo, se era isso que estavam querendo”.
Em outras palavras, a resposta à minha pergunta é que proooovavelmente não, eu não teria deixado passar alguns detalhes se tivesse assistido ao filme numa tela grande — da maneira que ele foi feito pra ser visto. E este é o grande ponto dessa história que, de certa maneira, complementa o que disse aqui sobre o ato de passividade que é assistir a um filme: as intenções de quem faz importa. E no caso de quem quer te contar alguma coisa através de imagens, importa AINDA MAIS.
A maneira como o espectador vai interpretar o que quer que tenha sido feito e dito faz parte da brincadeira que é fazer um filme. Mas a única maneira de interpretarmos é tendo acesso ao máximo possível de quem fez. Se eu já acho importante ler / assistir a entrevistas com diretores e roteiristas, imagina assistir a um filme da maneira que ele foi feito pra ser assistido?
¯\_(ツ)_/¯