Tom mais leve e o uniforme cheio de graça que encantou o mundo dão um novo espaço para Barbara Gordon sob os holofotes da DC – e ela gosta de brilhar! :)
Um dos pontos discutidos durante o painel do qual participei na edição 2014 do Festival Guia dos Quadrinhos, no último final de semana, ficou na minha cabeça – a coisa de que, além dos grandes e barulhentos reboots que a gente bem conhece (como os Novos 52, da DC Comics), as duas grandes editoras de HQs de super-heróis dos EUA também promovem, lenta e gradualmente, algumas atualizações título a título para ir “modernizando” seus personagens. Se eles funcionam ou não, aí é outra história.
Este é, nitidamente, o caso da Batgirl. Da primeira vez em que escreveu a personagem, a roteirista Gail Simone disparou poucas e boas contra a DC, afirmando ter sido demitida por e-mail, sem nenhuma consideração. Desta segunda vez, no entanto, Simone sai por conta própria, deixando uma elogiada passagem para trás. O motivo? As tais “diferenças criativas”. No entanto, um dos comentários da autora em sua conta no Twitter ajudou a deixar os fãs mais aliviados. “O novo editor, Mark Doyle, está injetando vida nova no bat-verso e se arriscando, o que é uma coisa ótima. (...) Estou triste de sair, mas feliz em ver que finalmente estão permitindo que a Batgirl não seja tão cinzenta a cada número”.
A declaração de Simone faz todo o sentido. Assim que foi anunciada a nova equipe criativa, formada pelos roteiristas Cameron Stewart e Brenden Fletcher e pela cultuada ilustradora Babs Tarr, novata no mundo das HQs, a coisa que mais chamou atenção foi o novo uniforme. Moderna, divertida, descontraída e com um toque fashion, a nova roupa de Barbara Gordon para combater o crime já era sinal de por onde caminharia a trama. Mais modernidade e menos sexismo – digam adeus àquela roupinha colada no corpo para evidenciar as formas voluptuosas. Barbara se tornou uma bela garota comum, que parece conversar bem melhor não apenas com os jovens leitores, mas também com as novas leitoras. Ela não tem vergonha de tirar selfies ou receio de perseguir vilões enquanto escolhe entre Katy Perry ou Azealia Banks no iPod como trilha para sair saltando de prédio em prédio.
Quando você lê este novo título da Batgirl, que começou a partir do número 35, recém-lançado nos EUA, percebe então que a mudança vai além do uniforme – e passa mais diretamente pelo tom das histórias. Aliás, o uniforme é lindo, é uma ideia brilhante, mas honestamente é o de menos. “Estamos misturando elementos de Veronica Mars e Girls, com um pouco de Sherlock para dar um equilíbrio interessante”, define Fletcher, um dos escritores. Ele não poderia estar mais certo.
Esqueçam os tiros à queima-roupa do Coringa, os psicopatas sombrios e demoníacos, o lado mais obscuro do ser humano. Em busca de uma nova vida, depois de um passado de dor e sofrimento, Barbara Gordon resolve se mudar para Burnside, uma faceta até então desconhecida de Gotham, um distrito cool, trendy, hipster. Sim, isso existe. Saem as catedrais góticas e entram as casas da moda, com o melhor da música indie e um público colorido e de dialeto próprio. Barbara se deixa envolver pelo efervescente lado jovem da cidade – gerando o que a gente já pode chamar, desde já, de “o Gavião Arqueiro da DC Comics”.
A comparação coloca uma baita responsabilidade nas costas de Stewart e Fletcher, é verdade, já que a passagem de Matt Fraction pelo título estrelado por Clint Barton foi marcante, talvez um dos melhores títulos a surgir em todo o gênero de super-heróis em muitos anos. O segredo foi colocar justamente o lado heróico em segundo plano, usando de inteligência e bom humor para explorar em tramas cuja narrativa visual experimental fariam Will Eisner se orgulhar. No caso da Batgirl, saem os personagens underground do subúrbio e entram os estilosos com seus gadgets em punho. Mas o espírito é o mesmo. A moça-morcego é secundária, porque a história está centrada em Barbara e em sua nova colega de quarto, uma garota bissexual que está entre as mais populares da faculdade.
Só que o clima de mistério, de investigação, não sumiu. A brilhante memória fotográfica de Barbara pode ser vista quando ela reproduz, no melhor clima de CSI, exatamente as posições nas quais estavam todos os convidados da festa realizada em seu apartamento na noite anterior – para tentar descobrir alguém com atitude suspeita. Assim que um meliante sai da cafeteria roubando um iPad, Barbara traça imediatamente o único percurso possível para ele ao se lembrar de alguns obstáculos que viu no caminho e, saltando pelos telhados, derruba o camarada na esquina seguinte – provando a ele que é mais do que uma garotinha singela e magrela.
A arte ágil, limpa e cheia de movimento de Babs Tarr é uma mistura de mangá para garotas com a elegância sutil do traço de David Aja, o ilustrador do título do Gavião Arqueiro. Ela é o complemento ideal para uma história a respeito de um sujeito que faz fama e fortuna roubando arquivos particulares que as pessoas deixam na nuvem (te lembra algo?), encontrando fatos e fotos constrangedores o bastante para render chantagens e mais chantagens. Ele escolhe suas vítimas usando um novo aplicativo/rede social de encontros que lembra muito o Tinder. E ela consegue acabar com o camarada em seu próprio território usando um QR Code e uma mensagem enviada por um programa que lembra muito o Snapchat.
As referências pop são criativas e fluidas. Não são nada forçadas e estão totalmente integradas à história. Não tem ninguém querendo te forçar nada goela abaixo ou fazendo algo parecer o que não é.
A verdade é que esta é também uma grande chance, uma oportunidade de ouro, para que Barbara Gordon possa brilhar sozinha, longe da sombra do Batman. Talvez um dos mais emblemáticos personagens da cultura pop mundial, com um tipo de reconhecimento imediato que atinge até mesmo quem não é leitor habitual de quadrinhos, o Homem-Morcego infelizmente diminui todos os coadjuvantes à sua volta quando está no papel principal. Tudo gira ao seu redor. Barbara se tornaria uma personagem de fato interessante na mitologia da DC quando deixou de ser um mero clone feminino de Bruce Wayne e, presa a uma cadeira de rodas, assumiu a alcunha de Oráculo, a inteligente, criativa e desafiadora hacker que se tornaria referência de análise de dados para todos os personagens do universo urbano da DC.
Como Oráculo, a filha do Comissário Gordon passou a brilhar no título da superequipe Aves de Rapina – mas mesmo nas páginas do gibi solo do Batman, quando aparecia, tinha uma personalidade própria e única, por vezes até eclipsando o Morcegão.
O mesmo fenômeno pôde ser sentido quando Dick Grayson deixou de ser o Robin, mero reflexo do parceiro-mirim genérico do Batman, para se tornar o Asa Noturna. Grayson assumiu a sua própria alcunha de super-herói, tornando-se um vigilante das ruas de uma outra cidade (saindo de Gotham City diretamente para Blüdhaven) e comportando-se de maneira radicalmente diferente daquela adotada pelo Cavaleiro das Trevas, com uma personalidade mais ousada, leve e bem-humorada. Era a chance de Dick, sozinho, sem Bruce para dizer como fazer.
Alguém acredita que a excelente revista em quadrinhos Gotham Central (2002/2006), escrita por Greg Rucka e Ed Brubaker, teria chance de funcionar em seu tom de série procedural a la CSI se o diacho do Batman ficasse aparecendo toda hora, a cada minuto? Ele se tornou essencialmente um nome a ser mencionado nos corredores do distrito policial. Mais do que isso, influenciaria demais no tom e na percepção da história.
Depois de perder praticamente tudo que tinha em um incêndio – que tem relação direta com a sua briga, vista em Birds of Prey, com a outrora amiga Dinah Lance, a Canário Negro – a moçoila dos Gordon terá que reconstruir a vida praticamente do zero. “Diferente do Batman ou da Batwoman, ela não precisa mais ficar nas sombras – na verdade, ela aprende a abraçar os holofotes”, explica Stewart. “O resto da bat-família que lide com as trevas. (...) Queríamos uma Batgirl que pudesse se sustentar sozinha como personagem, independente do Batman e do Comissário Gordon. Ela não vai enfrentar os vilões de seu mentor ou lutar para reatar seus laços de família. Esta é Barbara Gordon se libertando, para o bem ou para o mal”.
A julgar por este primeiro número, senhoras e senhores, com certeza é para o bem.