Batman #50: quando o casamento é o menos importante de uma história de casamento | JUDAO.com.br

Tá bom, vamos admitir que talvez a DC tenha pesado a mão no marketing do enlace de Bruce Wayne e Selina Kyle — entregando uma história que frustra quem queria um casório cheio de pompa e circunstância, mas é um deleite para quem esperava só uma boa história do Morcegão

SPOILER! A gente sabe que tanto Marvel quanto DC amam esses expedientes que funcionam como viradas de mesa bombásticas no status quo de seus personagens, tipo morte (o mais básico deles), renascimento, o retorno de um coadjuvante há muito desaparecido, o nascimento ou aparição de um filho e... casamentos. Rapaz, como as duas amam ENLACES repletos de pompa e circunstância que, OBVIAMENTE, se transformam em imensas campanhas de marketing com o objetivo de deixar todo mundo louco pra ler o gibi futuro no qual as alianças serão trocadas. E tome meses e meses do assunto sendo exaustivamente martelado enquanto acontecem os preparativos.

Foi assim com Peter Parker e Mary Jane Watson, foi assim com Clark Kent e Lois Lane. Portanto, seria assim também com Colossus e Lince Negra e igualmente com o Batman e a Mulher-Gato. No primeiro caso, a coisa teve tons rocambolescos, meio novela mexicana, num desfecho para seguir a boa e velha tradição de relacionamentos complicados nas fileiras dos X-Men. Só que, com o Homem-Morcego, a parada foi BEM diferente.

Não apenas porque, tal qual o Superman, o Morcegão é um dos personagens mais icônicos da nossa cultura pop — e que pediu em casamento uma de suas maiores inimigas, uma anti-heroína de moral questionável cujo envolvimento com ele, ao longo dos anos, se alternou entre o flerte, o ódio, a tensão sexual e o desejo de vingança. Mas já dava pra sacar, desde o pedido de casamento, que a construção que o roteirista Tom King tava fazendo aqui era MUITO diferente daqueles tradicionais EVENTÕES que as editoras tanto curtem fazer.

“Eu não sou Batman porque eu gosto. Eu sou o Batman porque eu sou o Batman. (...) Eu faço isso, mas não sou feliz. (...) Porque eu tenho medo. Eu falho porque eu tenho medo. Eu não quero ficar maluco. Então eu tenho medo”. Esta confissão, que Bruce Wayne fez pra Gotham Girl, uma nova vigilante e combatente do crime, nas páginas de Batman #24, mostra o peso da coisa toda. Por mais que a DC tenha, ao longo dos últimos meses, alimentado toda esta coisa do casamento do jeito que os marketeiros tanto amam, o arco NUNCA foi sobre um casamento, sim sobre o relacionamento entre Bruce e Selina e, principalmente, a jornada de autoconhecimento que um fez sobre o outro e ambos acabaram fazendo sobre si mesmos.

Claro que é lindo folhear a tal revista do casamento, que foi enfim lançada esta semana, a tal Batman #50, e se deparar com as artes especiais de um monte de artistas que, em sequências de flashback, ajudam a relembrar momentos e visuais icônicos do relacionamento do Batman com a Mulher-Gato: e aí temos traços de gente como Joëlle Jones, David Finch, Mikel Janin, Various, Lee Bermejo, Frank Miller, José Luis García-López, Ty Templeton, Becky Cloonan, Andy Kubert, Neal Adams, Rafael Albuquerque, Mitch Gerads... É um desbunde, de cair o queixo. Pra fã nenhum botar defeito.

Mas a grande sacada aqui está no texto do King. Aliás, foda-se, vamos tirar aqui o elefante branco da sala porque, desde o momento em que você começa ler as primeiras páginas da revista, o clima de tensão é palpável, tem mesmo algo estranho no ar e, sim, você já desconfia de que algo não vai rolar. No caso, o casamento. É, exatamente isso aí, o casamento não rola. Mas o grande pulo do gato (HÁ, ENTENDEU O QUE EU FIZ AQUI?) é que isso é o menos importante de tudo. Porque, se você chegou aqui procurando um matrimônio, não vai achar, mas será presenteado com uma belíssima história agridoce, tocante, sobre o cara por baixo da roupa da morcego. E se, dane-se toda a coisa do “ah, olha a grande surpresa do final, por esta você não esperava”, tudo que você tava buscando era uma HQ de qualidade estrelada pelo Batman, parabéns, você conseguiu.

King demonstra um conhecimento brutal do casal de personagens ao alternar os depoimentos de ambos, um a respeito do outro, começando sobre a impressão inicial que eles tiveram dos olhos do parceiro. Ela com os olhos verdes felinos e cheios de determinação e fúria sempre à mostra, sem medo de se expor, querendo dominar; e ele com os olhos azuis escondidos por baixo daquela película branca, querendo fugir do mundo, desejando afastar qualquer um que pudesse minimamente ler a sua dor. Sim, é este nível de profundidade ao qual me refiro, muito mais do que “qual ex-parceiro mirim do Batman vai trazer as alianças?”. As camadas são diferentes.

Conforme a noite vai passando e então se aproxima o horário da tal cerimônia que eles realizariam quase que a sós, num telhado, longe dos olhares de todos até pra preservar suas respectivas identidades secretas, eis que começa a ganhar mais destaque outra dupla, numa trama inteligentemente já bastante econômica em termos de personagens: Alfred Pennyworth e Holly Robinson.

Ele, mais do que o fiel mordomo da família Wayne, o tutor, mentor e protetor de Bruce, é escolhida para ser sua testemunha, à frente até de Dick Grayson, talvez um dos amigos mais queridos do protetor de Gotham City. “Sempre fomos eu e você, Alfred, desde o começo. Eu nunca poderia fazer nada sem você”. O momento é lindo e gera uma cena entre os dois que, em sua honestidade, em sua beleza, talvez seja das mais emocionantes que eu já li em um gibi de super-heróis. É lindo. E só este momento justificaria a pergunta: “eu mereço ser feliz, Alfred?”.

Já ela sai da prisão (ou, para ser mais preciso, “é saída”) para acompanhar o grande dia da melhor amiga Selina. E ali é que se dá um clique estranho. Do seu lado, o maior detetive do mundo chega à conclusão que Selina é um mistério que não pode ser solucionado. Mas Holly tenta solucionar seu próprio mistério a respeito de Bruce. “Eu nunca pensei nele assim”, diz ela. Selina pergunta o que ela quer dizer. “Nunca pensei nele sendo feliz. Sempre achei que ele precisasse do sofrimento dele. Como se fosse isso que fizesse ele fazer o que faz”.

“Se nós formos felizes, se eu ajudar o garoto solitário com aqueles olhos solitários, eu acabo com a máquina”, diz a Mulher-Gato, numa carta ao amado, reforçando que, apesar de Bruce ainda ser, no fundo, uma criança ferida por seu passado cheio de cicatrizes, ele também é uma máquina que transforma dor em esperança. “Se eu fizer isso, eu acabo com o Batman. Eu acabo com a pessoa que salva todo mundo”. E justamente quando se pergunta se ela é, afinal, uma heroína ou não, num conflito de identidade que permeia Selina Kyle desde sempre, enfim vem a resposta: “Para salvar o mundo, heróis fazem sacrifícios. E meu sacrifício é o meu amor”.

Na época do lançamento do trágico (no sentido ruim) filme Batman & Robin, o diretor Joel Schumacher esteve no Brasil e foi ao Programa Livre, do Serginho Groisman, lá no SBT. Durante o papo com a plateia, no melhor esquema Altas Horas, o cineasta disse uma frase que eu nunca esqueci: “Ah, no nosso filme, este é um Bruce Wayne mais leve, mais solto. Ele já superou a morte dos pais”.

Nunca esqueci o quanto aquilo me soou errado porque, no fundo, Bruce Wayne, o playboy frívolo, é a identidade secreta, a persona que ele criou para se disfarçar do mundo. O Batman, o vigilante com os nervos à flor da pele, putaço, querendo esmurrar o mundo, desconfiado de tudo e todos, sempre criando um plano B para derrotar inclusive seu mais sincero aliado, é o verdadeiro reflexo do garoto assustado que perdeu os pais no Beco do Crime. Se Bruce supera suas cicatrizes, ele não vai ser mais o Batman. Eu entendi isso. Selina Kyle entendeu isso. Tom King entendeu isso. E, ao final deste conto amargo, o próprio Batman entendeu isso.

Mais uma vez: juro que entendo a decepção e a sensação de virada de mesa de quem realmente acreditou neste papo todo. Mas, do ponto de vista do leitor querendo o melhor “do” Batman e não “pro” Batman, FODA-SE esta história do casamento. Aqui, a festança natimorta serviu apenas como um recurso narrativo para que o autor contasse uma história sofisticada como parte de um quebra-cabeças que promete ter ecos diretos no futuro do Cavaleiro das Trevas daqui pra frente.

Um cavaleiro que, aliás, deve mergulhar ainda mais em suas próprias trevas.