Birdman e o papel da vida do Michael Keaton | JUDAO.com.br

Sendo honesto, o filme não é tão bom quanto dizem. É incrivelmente melhor. :)

Dias depois da cerimônia do Globo de Ouro, um grande amigo postou uma mensagem indignada no Facebook – tudo porque descobriu que o Michael Keaton tinha faturado o prêmio de melhor ator por Birdman. “Tem o Michael Keaton no filme? Sinal de que eu tenho que passar longe, sem pensar”, era mais ou menos este o teor da mensagem. Tentei defender, relembrei de seus papéis como Batman, como Beetlejuice, tentei argumentar que ele foi muito além das comédias leves e rasteiras. Mas, aos poucos, dei por mim que Keaton pouco tinha feito, de relevante, além das tais comédias leves e rasteiras. Ficou ruim pra mim e pra ele.

Isso obviamente até assistir de fato a este Birdman. E, rapaz, não apenas acho que o Keaton merecia o Globo de Ouro. Pra mim, ele merecia o Oscar, o Bafta, o Emmy, o Grammy, o troféu do campeonato de bocha de Atibaia e qualquer porra de estatueta dourada que encontrarem pela frente e resolverem dar para o cara. Porque, em um filme naturalmente brilhante, repleto de acertos, Michael Keaton é a cereja do bolo. Ele consegue roubar a cena. E nos entrega a melhor performance da carreira. Assim mesmo, sem pensar. Birdman é, de longe, o filme da vida de Michael Keaton.

Essa, rapaz, aquele meu amigo vai ter que engolir. Em seco.

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Birdman é metalinguagem pura, um conto sobre o ofício de ser ator na indústria hollywoodiana do cinema. Não, não se trata de uma adaptação do Homem-Pássaro da Hanna-Barbera (e eu gostaria, de fato, que você já soubesse disso ANTES). Tampouco é uma sátira a filmes de super-heróis. Aliás, o Birdman uniformizado, em pessoa, aparece pouquíssimo no filme. Essencialmente em duas pequenas cenas nas quais seria fisicamente necessário para dar mais impacto, somando menos do que cinco minutos.

No restante do tempo, o herói é apenas uma voz ecoando na cabeça de Riggan Thomson (Keaton), ator que fez muito dinheiro com uma trilogia de blockbusters na qual interpretava um personagem típico das HQs. Mas Riggan não estava satisfeito e resolveu se reinventar, mostrar que é capaz de ser um ator de verdade. Do cinemão cheio da grana para o teatro independente, eis que o astro resolveu escrever e estrelar uma adaptação teatral de What We Talk About When We Talk About Love, conto curto do cultuado autor Raymond Carver. E aí é que começa o problema.

Riggan não tem grana. Fica a todo custo tentando levantar financiamento para a peça ao lado do amigo e produtor Jake (Zach Galifianakis). Riggan também não é exatamente o sujeito com mais experiência no mundo nos palcos, o que o faz ser questionado não apenas pelos críticos mas também pelos colegas. Mike (Edward Norton), uma aquisição de última hora para o elenco, é uma jovem e volátil estrela do teatro que entra em embate direto com o dono do espetáculo. Temperamental e cheio de manias e maneirismos, ele é a favor da improvisação, da entrega total e visceral ao papel e trata Riggan como uma “piada” – que, de seu lado, se sente como se o sujeito estivesse tentando roubar a atenção. Nos corredores da peça, ainda circula Sam (Emma Stone), filha de Riggan, uma ex-viciada que trabalha como sua assistente mas é cheia de problemas com o pai ausente.

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E para completar, ainda tem aquela voz falando na sua cabeça, dizendo que ele pode mais do que isso, que ele é uma estrela do cinema, que aquele não é o lugar dele e que é hora de mostrar ao mundo que não é um fracassado – além de fazer com que Riggan tenha visões de si mesmo usando poderes como levitação e telecinese. Ele é um herói, diabos, por que está se submetendo a isso quando poderia ganhar milhões de bilheteria ao vestir o manto do Birdman novamente? Birdman, no fim das contas, é o seu próprio ego fantasiado de justiceiro mascarado.

Como o elenco principal é bastante enxuto, o diretor Alejandro González Iñárritu dá espaço para que todos brilhem, em especial Norton e Stone, que entregam ótimos momentos (principalmente nos diálogos dos dois juntos, no telhado da casa de espetáculos). Mas quando Keaton entra em cena, todas as luzes se voltam para ele. Navegando entre a comédia e o drama, o ex-Homem-Morcego parece contar a própria história. Um tipo triste e solitário, ele é a síntese de uma discussão que toma conta da vida de todo grande ator da indústria do cinema em algum momento – “eu sou um ídolo pop, mas como fazer para que as pessoas me respeitem de verdade pelo meu ofício de ator? Que desafio eu precisaria cumprir? O quanto eu preciso sacrificar?”. E também está no centro daquela velha discussão: afinal, o ator de teatro é mais ator do que o sujeito que faz cinema / TV? Fazer teatro exige mais das capacidades interpretativas de um profissional da atuação?

Emma Stone

No meio do turbilhão emocional pelo qual passa Riggan, o que não faltam são referências, indo da sugestão de Jeremy Renner como substituto de um ator ferido (“Ele é ótimo”, diz Riggan; “Mas ele é um Vingador!”, rebate Jake) à reportagem rolando na TV do camarim sobre como Robert Downey Jr. se recriou justamente graças a um personagem de blockbusters (aquele que tira onda que é cientista espacial, sabe?).

Mas além de Keaton, existe um outro personagem que merece destaque: a câmera de Iñárritu. O jeito que ela se move ao longo da trama diz tanto, mesmo em silêncio, que é possível afirmar que se trata de um personagem à parte. A maior parte da trama se passa nos corredores do teatro, em suas salas, seus camarins, tudo bem fechado, quase claustrofóbico. E é justamente por isso que a câmera funciona tão bem ao perseguir os personagens, ao correr atrás deles, ao circular ao seu redor enquanto discutem, ao se meter em closes incômodos, ao subir e descer para ajudar a marcar a passagem de tempo, sem cortes. Ela é a sua visão, caro espectador, mas também parece que o Birdman está, em silêncio, dando rasantes, farejando a mesquinharia destes “reles mortais”.

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E o final? Cara, o final é de uma beleza, de uma inteligência, de uma sutileza que, sério, me fez sorrir ao mesmo tempo em que tive vontade de chorar. E o mais legal é que se trata de um final aberto, que não é assim tão óbvio de decifrar. Ainda bem, aliás.

Birdman é, de longe, o filme mais esquisito e complexo dentre todos os indicados ao Oscar deste ano. E, afinal, ele é a redenção de um herói. Mas ele não é um homem-pássaro ou um homem-morcego. Ele é apenas um cara comum chamado Michael Keaton.