Blackstar, de David Bowie: jazz, rock e uma boa dose de esquisitice | JUDAO.com.br

O que sai desta junção? Um disco moderno, dinâmico, cheio de experimentações e longe de ser simples de explicar ou mesmo escutar – mas, ainda assim, ESPETACULAR

Quando David Bowie saiu de seu exílio criativo de uma década para lançar o ótimo The Next Day, em 2013, o que ele entregou foi um álbum que conversava diretamente com a sua chamada trilogia berlinense (Low, Heroes e Lodger). Mas, como eu mesmo escrevi à época, era um disco de rock, back to the basics.

Claro que a habilidade inata de Bowie para a estranheza, para explorar o novo, acaba sendo natural. Então, mesmo um disco de rock básico, nas mãos de quem ficou, acaba não ficando assim tãããããããão básico.

Surpreendentemente, três anos depois, quando já se esperava que o inglês ia enfim embarcar numa aposentadoria artística, eis que ele me surge no dia do próprio aniversário de 69 anos com Blackstar, outro disco de inéditas. Pois é, sabe o que ele fez em The Next Day? Esqueça rigorosamente tudo. Como se esperaria de Bowie em seu ápice artístico, a parada aqui é completamente diferente.

Ele chegou a dizer que uma de suas inspirações para o disco seria To Pimp A Butterfly, álbum de Kendrick Lamar – e um monte de fãs assustou, acho que o camaleão ia virar do rap, estas paradas. Em resumo: não entenderam nada. “Não faremos nada parecido com ele, mas amamos o fato de que Kendrick foi tão mente aberta e não fez um disco padrão de hip hop”, explicou o produtor Tony Visconti, em entrevista para a revista Rolling Stone. “Ele brincou com os elementos, jogou tudo lá, e isso é exatamente o que queremos fazer. O objetivo, em muitas, muitas, muitas maneiras, era evitar o rock n’ roll”.

Blackstar-CDLembra quando, em 1997, Bowie colocou na rua o polêmico Earthling, uma maluquice totalmente influenciada pela música eletrônica, por sons industriais, pelo drum n’ bass? Blackstar não soa como Earthling, claro. Mas conceitualmente, a pegada é a mesma.

Devo dizer que, olha, seu Visconti, vocês conseguiram. E de maneira brilhante, eu diria. Blackstar é uma gigantesca experimentação que tem muito mais de jazz do que de rock – embora o elemento roqueiro esteja lá, escrito nas entrelinhas.

É um álbum esquisito, sem refrões fáceis, sem melodias grudentas, sem guitarrinhas com riffs pra você ficar assobiando depois. Mas o efeito que ele causa depois que você ouve... uau. Que porrada. Sabe o professor vivido pelo J.K.Simmons em Whiplash? Ficaria num misto de fascinado e horrorizado. O que é um ótimo sinal.

A história de Blackstar começou quando Bowie foi ver num barzinho sossegado em Nova York assistir à apresentação do quarteto do saxofonista Donny McCaslin. Incógnito e sem fazer alarde, o músico entrou, sentou, curtiu e saiu. Logo depois convidou Donny e sua trupe para tirar um som.

O resultado acabou sendo as canções Sue (Or in a Season of Crime) e Tis a Pity She Was a Whore, que o público teve a oportunidade de ouvir pela primeira vez numa versão preliminar em Nothing Has Changed, a compilação que o músico lançou em 2014.

A partir daí, Blackstar acabou se tornando cheio de formas – e de cores e texturas. Uma combinação de canções longas e quebradas, que brincam com suas próprias estruturas. No novo álbum, Tis... ficou mais encorpada, mais gostosa, mais cheia de saxofones, mais sexy. E Sue, bom, ganhou ares de música mesmo – ao invés de soar como um manifesto sem muita costura, parece ter de fato a participação de uma banda, que se encaixa à performance vocal única de Bowie como as engrenagens de um relógio suíço, numa vibe que lembra uma perseguição desenfreada em um filme de ação experimental (na minha cabeça, pelo menos, isso faz sentido).

Mas a piração já começa pela música-título, criada para ser a abertura da série criminal inglesa The Last Panthers – e que traz Bowie cantando de maneira quase tétrica, um espantalho pós-moderno, quase que o tempo todo acompanhado por uma bateria aparentemente fora de sincronia e com uma camada eletrônica. Só que, lá no meio, pasmem, a canção se transforma em uma espécie de balada de coração apertado e rasgado. O grande lance é que conforme os minutos passam e o estranhamento inicial vai ficando pra trás, você percebe que os elementos combinam perfeitamente e fica absolutamente hiptonizado com o que está rolando.

Lazarus também já tinha sido cantada por aí, afinal ela está no musical off-Broadway de mesmo nome escrito por Bowie e no qual Michael C. Hall (aka Dexter) interpreta Thomas Newton, uma versão do alienígena bêbado e corrupto vivido pelo próprio David no filme O Homem Que Caiu na Terra (1976). E é uma linda e melancólica faixa com um puta ar teatral sobre um sujeito que vivia como um rei, que estava no céu, e que caiu em desgraça.

Dá pra imaginar, por exemplo, que Bowie consiga fazer o seu jazz desconstruído ter ares de hip hop em Girl Loves Me, com direito até ao próprio cantando com jeitão falado, quase como um MC? Pois é, ele faz, este miserável. E faz bem. Faz de maneira natural, inteligente, que não soa forçada. E que tal I Can’t Give Everything Away, que encerra os trabalhos sete faixas e quarenta minutos depois? Depois de tantas alucinações espinhosas, ele ainda arrisca uma baladinha delicada e ao mesmo tempo intensa, que começa doce e depois se rende a um baita solo embalado e lindo de guitarra, que vai rolando de fundo enquanto Bowie repete insistentemente o título da música.

Blackstar não é um disco de rock. E justamente por isso é o disco ideal para a nova persona que Bowie criou para si, o anti-rockstar. O sujeito que vive uma vida sem glamour, sem holofotes, sem tapetes vermelhos, sem fotógrafos. Que não dá entrevistas, que não vai a programas de televisão, que não vê necessidade de explicar o conceito de seus trabalhos, que não faz turnês para promovê-los. Só mesmo um anti-rockstar poderia fazer um disco de rock que não soa quase nada rock mas que, ao mesmo tempo, transborda aquela transgressão que se espera do rock.

Difícil de explicar? Pois é. Bowie sempre foi assim. Conforme-se. Acostume-se. E deleite-se com a porra de um trabalho de gênio.