Quando ela pede pra ser chamada de Caitlyn, há muito mais do que uma mulher transsexual se assumindo ao Mundo — muito, mas muito além das Kardashians
Tava no twitter quando li, sem esperar ou lembrar de que essas coisas são pensadas e ditas a torto e a direito, o que a pessoa chamou de um QUESTIONAMENTO sobre toda essa história de Caitlyn Jenner: “Vocês não acham que essa história do Bruce Jenner virar mulher é só mais uma jogada midiática da família Kardashian pra aparecer?”
Vou deixar pra lá todos os tipos e níveis de preconceitos que essa ideia de “jogada de marketing” carrega e focar no fato de que, se já não faz absolutamente NENHUM sentido alguém assumir a sua transgeneridade “pra aparecer”, imagina alguém fazer isso aos 65 anos e, de certa maneira, ser obrigado a fazê-lo longe, mas MUITO longe da sua privacidade?
Sim, eu sei e é um fato que a família Kardashian faz o possível pra sempre estar na mente de todo mundo — o que só acontece, ao mesmo tempo, porque todo mundo tem a família Kardashian na mente. É a mesma coisa que um ex-BBB, uma ex-vice-Miss Bumbum, Vingadores, Batman, Superman. Eu acho que eu aceito, sim, a discussão sobre o que os fez ser famosos e se isso é o suficiente pra alguém se tornar uma celebridade.
Mas uma coisa é tirar a roupa porque quer e mostrar pra todo mundo. Outra é um HERÓI AMERICANO assumir sua identidade feminina.
Esse, aliás, é mais um erro de julgamento e falta de conhecimento. Ao “questionar” que Caitlyn Jenner assumiu sua identidade feminina “pra aparecer”, leva-se em consideração apenas o fato de ela ser uma das estrelas de Keeping Up with the Kardashians e todo o peso midiático que esse nome carrega, esquecendo TODO o passado de Jenner.
Do 10o lugar no Decatlon nas Olimpíadas de Munique, em 1972, quando vendia seguros de dia (ganhando US$9.000 por ano) pra treinar a noite, ganhou a medalha de ouro no pan da Cidade do México, em 1975, e, no ano seguinte, repetiu o feito nas Olimpíadas de 76, em Montreal. Foi eleito o Maior Atleta do Mundo, entrou para vários “Hall of Fame” de atletismo e seu nome é usado pra batizar um campeonato anual de atletismo, na Universidade de San Jose.
Nessa época de Guerra Fria, o basquete, 100 metros livres e o decatlon, sempre dominado pelos americanos, acabavam ficando nas mãos dos Soviéticos. Ao levar a medalha de ouro de volta pros EUA, ele se tornou, de fato, um herói nacional — e começou, influenciado por seu agente, a capitalizar a história, deixando de lado o atletismo (naquela época, atletas olímpicos não podiam ganhar dinheiro, de maneira nenhuma).
O primeiro grande momento pós-medalha de ouro, porém, veio quando ele passou a ser visto em tipo todas as casas americanas, todos os dias de manhã, na caixa de cereal Wheaties — o mesmo cereal que, algumas várias décadas antes, ajudou a criar o Jonny Quest. É, basicamente, como se ele fosse o TONY TIGRE daquela época.
Ganhou muito, MUITO dinheiro. Ficou muito, MUITO famoso.
Mas pra você entender melhor como os americanos enxergavam Caitlyn Jenner naquela época... Pare e pense aí, por alguns segundos, como e por que você conhece Christopher Reeve. Feche os olhos e me diga qual é a primeira imagem do ator que aparece na sua cabeça.
A recíproca, aliás, é verdadeira também: pense rapidinho no Superman. Feche os olhos... E me diz qual é a primeira imagem que aparece?
Pois é. Existiu a possibilidade, real, que você enxergasse Caitlyn Jenner como o Superman, e vice-versa. Existiu a possibilidade, real, de que um dos grandes ícones americanos e da cultura pop fosse uma mulher transsexual. Ela chegou a fazer testes pro papel, no filme de 1978, que acabou ficando com Reeve — e aí foi ganhar o Framboesa de Ouro por um filme do VILLAGE PEOPLE.
Foi uma boa decisão dos produtores, portanto. ;D
Assim: quando você vê Caitlyn Jenner na capa da Vanity Fair, dando entrevista pra rede de TV aberta em horário nobre e, em resumo, TODO MUNDO falando sobre o fato... Se fosse uma jogada de marketing, seria uma jogada muito boa, fazendo o mainstream discutir / exibir a transsexualidade. Ou transsexualismo, não sei — e aí, por mim, tudo bem.
Mas, mais importante que isso, entenda que estão discutindo / mostrando a transsexualidade de uma HEROÍNA NACIONAL, que alguém considerou, em algum momento, que poderia ser o MAIOR ÍCONE DA CULTURA POP DO UNIVERSO.
Senhoras e senhores, Caitlyn Jenner.