Ao invés de simplesmente adaptar o futuro distópico das grandes metrópoles e corporações e fazer um Neuromancer tupiniquim, o novo lançamento da Editora Draco mistura Blade Runner, Chico Science e Patativa do Assaré
“O cyberpunk é agora”. Foi com esta frase que a gente abriu a nossa semana especial sobre o tema, a tempo da estreia da adaptação hollywoodiana de Ghost in the Shell. Mas com o lançamento do gibi nacional Cangaço Overdrive, dá pra fazer uma ligeira e necessária alteração na expressão: “o cyberpunk é aqui”.
Várias vezes a gente já falou no JUDAO.com.br, ao discutir cultura pop de nicho, que fazer obras originais de gênero aqui no Brasil requer muito mais do que apenas trocar o nome de “Nova York” pra “São Paulo” e aceitar os super-heróis flutuando pelos céus da cidade. Tem toda uma questão cultural única do nosso país que, se for devidamente considerada e trazida pra conversa, dá um sabor que torna não apenas tudo mais factível, mas também mais relacionável com o universo do leitor/espectador. São os orixás tomando o papel dos deuses nórdicos na temática kirbyana de Hugo Canuto. Ou o palhaço do mal ganhando contornos de artista de rua, ao som de música brega, no universo slasher de Condado Macabro.
Zé Wellington, natural de Sobral, interior do Ceará, faz roteiro pra quadrinhos há quase uma década e meia — e já foi, inclusive, premiado com um HQ Mix por seu Steampunk Ladies: Vingança a Vapor. Mas depois de brincar com os clichês dos vigilantes uniformizados em plena realidade nua e crua da favela em Quem Matou João Ninguém?, ele resolveu brincar com o cyberpunk. E também sacou muito bem o que é isso do sabor cultural local, fazendo o cyberpunk ser LITERALMENTE aqui.
Tamos falando de um Ceará num futuro próximo, enfrentando sua maior seca em séculos. E aí que, numa terra esquecida pelo governo e dominada pelos interesses dos conglomerados empresariais, um lendário cangaceiro e um impiedoso coronel são reanimados para continuar a peleja que deixaram no passado. Enquanto isso, uma comunidade autogerida tenta manter a independência ao defender sua terra de um ataque da polícia orquestrado por uma grande corporação.
É cyberpunk? Noir futurista, com tempero distópico, implantes cibernéticos pra lá, conexão neural com uma imensa rede de transmissão de dados pra cá, hackers, inteligência artificial? É sim. Mas é Brasil PRA CARALHO.
“O historiador Eric Hobsbawm escreveu um livro inteiro sobre vários casos de bandidos, no sentido de pessoas que estavam à margem da lei, que eram idolatrados pelas comunidades das quais faziam parte. Lá no livro ele escreve que este tipo de banditismo é uma forma bastante primitiva de protesto social organizado”, explica Zé, em entrevista ao JUDAO.com.br.
“O cangaço é um destes exemplos que chegam a ser paradoxais. Enquanto cruzavam um Nordeste esquecido pelo estado, Lampião e outros cangaceiros famosos roubavam e aterrorizavam a população. Mesmo assim, este período é lembrado com certo saudosismo, sendo o cangaceiro uma das figuras culturais mais relacionadas à região da caatinga”, define. Uma explicação para isso seria o entendimento de que, tão errado quanto o bandido, é o ambiente que o fez surgir. “A partir de uma história de deslocamento, imaginando um cangaceiro reanimado num futuro distópico, Cangaço Overdrive quer mostrar como o contraste social pode também tornar frágeis os limites entre bem e mal. Como dizia Chico Science: o medo dá origem ao mal”.
Por falar no Chico, bom, fã de longa data da animação Samurai Jack, aquela do Genndy Tartakovsky, o roteirista sempre pensou com seus botões de que forma poderia criar algo que tivesse a mesma pegada. “Mas já temos bastante samurais no futuro: Samurai Jack, Ronin (do Frank Miller), Afrosamurai... Se fosse para ser feito no Brasil, era preciso um personagem do nosso imaginário e o cangaceiro caía como uma luva”, conta ele.
E é aí que o profeta do manguebeat entra no conversa. Porque, além de coisas como o icônico Neuromancer de William Gibson e o universo de Blade Runner do Philip K. Dick, ele também se inspirou no disco Da Lama ao Caos, obra-prima de Chico Science ao lado da Nação Zumbi. “Foi uma das coisas mais cyberpunk que eu encontrei no Nordeste, com o Chico imaginando uma Recife caótica e denunciando uma exploração desregrada dos recursos do mangue. Para engrossar o caldo político, encontrei os cordéis do poeta popular Patativa do Assaré, que são quase cânticos de guerra pela reforma agrária, um tema que surgiu naturalmente na história”.
O roteirista conta ainda que trazer os temas do cyberpunk para o Nordeste possibilitou alguns paralelos interessantes. Por exemplo, qual é o cenário comum das histórias cyberpunks? Cidades sem vida e interesses das grandes corporações sobrepujando interesses sociais, com ricos muito ricos e pobres em situação de extrema pobreza. “Veja só, foi num cenário parecido com esse que surgiu o cangaço, no século XIX. O produto final é um legítimo cyberpunk, mas sem perder a regionalidade. Os cangaceiros, um dos assuntos preferidos dos cordelistas, viviam em seu próprio mundo pós-apocalíptico — e aí eu penso agora que esse apocalipse começou para o Nordeste quando o Brasil foi descoberto”, analisa. “A luta de classes que representa o PUNK do cyberpunk possibilitou alguma relações interessantes com o banditismo social”.
O argumento principal foi discutido e rediscutido entre ele, o desenhista Walter Geovani (seu contemporâneo, que trabalhou no gibi gringo da Red Sonja e agora está envolvido num encontro entre a guerreira e o Tarzan, com direito a roteiro de ninguém menos do que Gail Simone) e a editora. Na fase inicial de imersão do projeto, o Zé tava buscando uma voz específica para o trabalho. “Mesmo depois de ler romances como Grande Sertão: Veredas, Vidas Secas e Os Sertões, ainda sentia um certo formalismo na minha escrita: ainda parecia um cyberpunk escrito fora do país”. E foi neste momento que a literatura de cordel cruzou o caminho do escritor.
“Dei de frente com alguns experimentos do cordelista e quadrinista Klévisson Viana, entre eles adaptações de cordéis clássicos para quadrinhos, respeitando integralmente o texto original. Funcionava muito bem. Já havia na história uma personagem no futuro que tinha uma forte relação com a cultura popular e pensei: e se ela fosse a narradora da história e o fizesse como cordel?”.
Quem colabora com o Geovani nos desenhos é o Luiz Carlos B. Freitas, que faz sua estreia em Cangaço Overdrive. A maior parte das cores são da maranhense Dika Araújo, mais conhecida pelos desenhos da série Quimera (Pagu Comics). Já as cores dos flashbacks ficaram por conta do goiano Tiago Barsa (Justiça Sideral). E foi este monte de gente doida pra fazer o projeto mas tendo que priorizar outros trabalhos que, de fato, pagavam as contas, que fez com que o Zé buscasse uma alternativa diferente ao financiamento coletivo, que tem sido assunto recorrente quando falamos de publicação de gibis brasileiros aqui no site.
“O Catarse é um lugar muito bacana para quem tem uma HQ pronta, no ponto para imprimir e distribuir, dois aspectos onde o crowdfunding se apresenta com uma boa solução”, conta ele. “Sendo apenas roteirista, busquei o edital do Governo do Estado do Ceará porque desejava contratar toda a equipe e acelerar a produção. Como a temática regional me parecia algo que poderia atrair a comissão que analisa a liberação destes recursos, pensamos que era o melhor caminho”. E foi. :D
Um edital é uma espécie de concurso, segundo o autor explica: um regulamento (no caso, o tal do edital) é publicado pelo governo (municipal, estadual, federal) e vários projetos disputam um valor determinado. “Minha experiência com as leis de incentivo é que três fatores pesam muito para que um projeto seja selecionado: os currículos dos envolvidos, a qualidade do projeto e a habilidade (e paciência) do artista de conseguir sintetizar essas coisas num projeto atraente”. Mas antes que você, autor iniciante, se empolgue, calma que a ralação é mais ou menos a mesma e a aprovação é apenas o começo. “Os prazos são apertados e é preciso cabeça fria para o mar de burocracia até que a grana caia na conta. No fim, para mim vale muito a pena. Mas passei anos tentando até ganhar pela primeira vez”.
O Zé explica que esta seria a única forma de trabalhar num projeto adiantando o pagamento dos envolvidos. “O número de editoras de quadrinhos no Brasil que banca adiantamento para os autores é risível. A imensa maioria dos quadrinhos nacionais que se vê à venda hoje teve os autores trabalhando por meses ou anos antes de receber qualquer centavo por ele. É um modelo comercial que não faz sentido”, desabafa. Segundo ele, a única explicação para quadrinhos ainda saírem dessa forma é o imenso desejo que o autor tem de contar sua história. Só que, enquanto isso, os boletos continuam chegando...