A deliciosa surpresa do Capitão Cueca | JUDAO.com.br

Adaptação da série de livros do ilustrador americano Dav Pilkey é humor ágil, desafiador e cheio de referências pra molecada e pros pais também

Esse negócio de ter filhos tem um monte de lados muito bons, sabe? É delícia demais, disso não tenha dúvidas, mas deixa eu te contar uma coisa: também tem uma certa dose de sacrifícios envolvida. Quando a gente fala aqui especificamente do consumo de cultura, além de você saber que vai cada vez menos ver as séries que curte ou ir ao cinema, por exemplo, pela total e simples falta de tempo, já é melhor se preparar para o fato de que estas estes programas serão em grande parte substituídos pelos gostos DELES.

Assim os “recentemente vistos” do Netflix ou YouTube vão dando lugar pra Galinha Pintadinha, pra Peppa, pra Luna (e isso VAI acontecer em algum momento, acredite). E aqueles noitões de filmes do David Lynch vão virar matinês com pipoca e refrigerante para conferir um insuportável filme do Pica-Pau que alguém teve a tenebrosa ideia de lançar nos cinemas brasileiros – história real, acreditem. Só que, cá entre nós, apesar da vontade inicial de arrancar seus olhos com uma colher, quando você vê o pequeno do seu lado gargalhando loucamente com uma trama que, pra você, é o mais puro sofrimento, até que aquela Sessão da Tarde bem da mal-acabada passa a ter um pouco mais de graça.

Mas o mais legal aqui é que tem alguns momentos em que você se pega, ora ora, com uma grata surpresa em mãos. Aconteceu comigo neste final de semana, depois que meu filho insistiu um bocado para ver o tal As Aventuras do Capitão Cueca: O Filme, adaptação para os cinemas de uma bem-sucedida série de livros que eu nunca tinha lido, mas que já acumula cerca de 12 títulos diferentes, traduzidos em mais de 20 línguas e que já venderam mais de 70 milhões de exemplares, cortesia do americano Dav Pilkey e de um protagonista de meia-idade vestindo literalmente apenas uma cueca. E uma capa feita de cortina, claro.

Fui disposto a sofrer um pouco mais pelo meu menino, vamos lá, sem muitas esperanças, mas acabei me deparando com uma das animações mais legais do ano. Sem exagero algum. Sabia pouco ou quase nada sobre a trama e me surpreendi, me peguei rindo muito com uma narrativa inteligente, que não subestima a inteligência dos pequenos, repleta de metalinguagem e que ENTRECORTA a si mesma com outros métodos para contar a história que vai além da animação em 3D.

A trama absolutamente non-sense já cativa de bate-pronto, sem precisar recorrer a um montão de explicações didáticas sobre como isso ou aquilo acontece. Simplesmente entre no clima: Jorge e Haroldo são dois moleques que estudam juntos e são os melhores amigos desde o jardim de infância – além de serem os palhaços da turma, aprontando todo tipo de pegadinha com os professores. Além disso, os dois escrevem e desenham desde sempre uma série de HQs inspiradas no seu dia-a-dia. A principal delas, a que faz mais sucesso nos corredores da escola Jerome Horwitz, é a do super-herói conhecido como Capitão Cueca. No caso, uma versão gente boa e superpoderosa (ainda que meio burra e um tanto ridícula) de seu maior inimigo na vida real, o Diretor Krupp, um sujeito que quer a todo custo eliminar a diversão e a imaginação do currículo escolar.

Quando o Sr. Krupp encontra, enfim, uma forma de separar os dois moleques, colocando-os em turmas diferentes, eles tentam de tudo para impedi-lo, mas o que acaba funcionando mesmo são os poderes de um bizarro anel hipnotizador que veio dentro de uma caixa de cereais. Eis que, com um estalar de dedos, então eles transformam o Sr. Krupp realmente no Capitão Cueca, que quer encontrar um crime para combater a todo custo e acaba encontrando no novo professor de ciências da escola, um cientista maluco vindo de um país europeu qualquer e que tem um nome bizarro pra tornar as coisas ainda mais complicadas.

Capitão Cueca, o filme, já começa acertando na adaptação do traço quase infantil de Pilkey para a telona. Com mais profundidade mas ainda assim mantendo a simplicidade e economia nos desenhos, os personagens ganham expressões que lembram um tanto os humanos de Charles Schulz, mas com uma movimentação que, de um jeito bem divertido, parece homenagear os bonecos de Jim Henson e da Vila Sésamo. Mas é na narrativa que a produção brilha demais.

O timing de Capitão Cueca é genial, ágil, acelerado, sem te dar muito tempo pra respirar. E como o herói é criação dos meninos, não são raras as vezes em que eles quebram a quarta parede e recorrem à metalinguagem pra dar mais detalhes sobre a trama – seja explicando o plano genial contra o vilão usando seus próprios desenhos no caderno escolar, seja lamentando o que pode acontecer quando se separarem ao usar bonecos de meia e um bando de robôs de papelão, alternando entre 3D, 2D e até um tantinho de live-action só pra compensar. Tudo assim, de supetão, sem avisar, te atropelando mesmo e tirando onda de tudo isso, na melhor escola Monty Python de ser.

E as piadas, né? Porque Haroldo e Jorge são dois moleques que, como era de se esperar, curtem piadas imbecis sobre bunda, peido, arroto. Tem até uma certa passagem que só funciona em inglês e que eles conseguem, com brilhantismo, traduzir do jeito mais quinta série possível.

O resultado é que a linguagem do filme não apenas conversa com qualquer menino ou menina que está atualmente na quinta série como também com os papais e mamães que, bom, já estiveram na quinta série em algum momento da vida. Ao ver um legítimo representante de tal sala se acabando de rir do seu lado, acaba que aquilo tudo retorna com força total e você entra no clima.

Ah, você pode até achar que isso é linguagem inadequada pra a molecada? Bom, talvez seja porque você, então, já se tornou inevitavelmente adulto, e daquele tipo BEM chato, conforme Jessica Roake explica em um excelente artigo pro Slate — justamente no momento em que a tradicional família norte-americana, vejam vocês, discutia se aquilo era entretenimento saudável para crianças por incentivá-las a se rebelar contra a autoridade (JURO!). “Este tipo de conteúdo é feito para eles porque, pelo que pode ser a primeira vez em sua curta trajetória como leitores, os pequenos estão sendo entretidos e entendidos”, diz ela. “É para eles, não pra você. Este sentimento de exclusividade forma o tipo de conexão que eles deveriam ter com pelo menos um livro na vida”. Ou, neste caso, com um filme. <3

Tem lá um enorme pedação de besteirol? Ô se tem. Mas um besteirol que não precisa usar aquelas mesmas muletas cômicas insuportáveis sobre as minorias de sempre. Aliás, fica aí a dica: tá querendo um filme sobre dois moleques arrepiando na escola na melhor vibe Another Brick In The Wall enquanto enfrentam a resistência de um diretor quase ditador?

Então, não precisa mais procurar, acabou de encontrar. ;)