Chegou a hora de você escalar a montanha Celeste | JUDAO.com.br

Se você quiser jogar antes de ler, este é um game incrivelmente amistoso para iniciantes, tendo até um modo de assistência. Embora também tenha um modo de desafio extremo para quem é mais hardcore. O importante é o que o game diz para a gente no começo, no meio e no fim

Se você é um entusiasta dos joguinhos, então sabe que a maioria deles é mediano. FATO. Como qualquer outra peça artística, a massificação do mercado deu origem a muitos títulos que estão lá só pra mover cifrões. Você vai jogar, se divertir, desligar o PC / console e esquecer. E tudo bem com isso.

Mas a diversificação dos modos de “como criar games” inundou o mercado independente. E estes, livres de qualquer amarra estritamente comercial, podem avançar a linguagem e experimentar ideias e expressões que nem sempre os produtos Triple A têm a liberdade de buscar.

Só que é mais do que isso. No cinema, na literatura, nos quadrinhos, nas “artes mais tradicionais”, nós já conhecemos várias maneiras de se entrelaçar mensagem e linguagem. Um filme tem infinitas maneiras de dizer infinitas coisas, através do som, da textura, da luz, dos ângulos de câmera, dos diálogos, do que está acontecendo no fundo da tela, fora do foco, ou até do que está acontecendo fora do quadro, como diz o Scorcese.

Nos games, além de termos todas essas ferramentas, ainda temos o controle. Você está controlando um personagem (ou vários) através de comandos. Seu avatar faz coisas sob suas ordens. Essa é a premissa básica dos joguinhos.

Mas o que acontece quando até mesmo o que você, jogador, está fazendo com o personagem naquele mundo virtual se torna mais do que a maneira pela qual você atinge o objetivo da fase? O que acontece quando essa relação entre você e a máquina também comporta aquilo que os criadores querem que você entenda? Quando a particularidade mecânica dos games toca você tanto quanto você está manipulando aqueles pixels?

Uma garota chamada Madeline decide que vai escalar uma montanha. O porquê nem ela sabe exatamente. Ela só precisa chegar ao topo. E, ela acha, as coisas vão se encaixar. Então você começa a controlar a pequena Madeline, e vai subindo a montanha.

Bem-vindo a Celeste.

No meio do caminho, você vai encontrando personagens cômicos, com os quais Madeline cria amizade. Uns mais do que outros, como Theo, o andarilho viciado em redes sociais. Madeline é avisada: Celeste não é uma montanha comum. Coisas estranhas acontecem nas noites geladas, e muita gente voltou da escalada completamente mudada. Você escala, pula, desvia de espinhos, apreciando a gloriosa pixel art que o estúdio brasileiro MiniBoss criou. E o game parece ser bem simples.

Mas tem uma hora que Madeline cai no sono. E quando acorda, é confrontada por… OUTRA Madeline. Uma Madeline “mais gótica e trevosa”, que parece não estar muito contente com a aventura de Madeline. Essa Outra Madeline se torna então uma antagonista, tanto em termos de objetivo, já que ela atrapalha sua escalada aos montes, quanto em termos morais, sendo muito mais agressiva e injusta com outros personagens.

Madeline está passando por uma experiência de depressão.

Sua fuga para a montanha, ela vai descobrindo aos poucos, tem tudo a ver com seu estado de espírito. E ela coloca todas as fichas no topo da montanha. Chegar lá, pra ela, vai destrancar alguma coisa em sua vida, em sua mente. Talvez faça com que pare de ter ataques de pânico. Talvez lhe dê a motivação para resolver outras áreas de sua vida. Quando a Outra Madeline aparece, não demora para que Madeline entenda quem é essa aparição: é a sua ansiedade. É a sua raiva. Seu descontentamento. São as partes que ela quer jogar fora. Quem sabe, deixar no topo da montanha.

Acontece que, perto do final do jogo, a Outra Madeline arremessa Madeline num abismo. Depois de sobreviver, Madeline entende que sua jornada acabou. Não dá para recuperar toda a altitude que perdeu. Seu “lado negativo” venceu. É aí que encontra uma enigmática velhinha. Essa velhinha lhe propõe uma outra ideia. Talvez… A Outra Madeline só esteja com medo. Talvez ela só precise conversar.

As inúmeras doenças mentais que brotam na gente vêm de todo tipo de origem. Quanto mais você investiga, acompanhado por um terapeuta, mais você consegue entender porque você está sofrendo.

Eu luto contra depressão e ansiedade desde 2011, quando o stress no trabalho desencadeou uma série de ataques de pânico que mudaram a minha vida e a daqueles à minha volta. Fui atrás de remédio e de terapia para me curar, e até hoje tenho problemas para me acertar quando um episódio acontece.

Porém, numa das sessões que tive, meu terapeuta propôs uma solução inesperada para como eu encaro a minha própria ansiedade — solução essa que ressoou alto e firme com o aspecto central da solução narrativa de Celeste.

“Sua ansiedade”, parafraseio, “é parte de você. Ela não é alienígena. Ela é algo que seu corpo criou com uma função específica. Ela só está desregulada”. Lembrou também de Divertida Mente, da Pixar? “Ela não pode morrer porque ela faz parte de você. Só que você está lutando contra ela, quando deveria estar convidando ela para entrar. Sentando e conversando com ela. Tentando entender porque ela está gritando. Quanto mais você bater nela, mais ela vai gritar. A solução é encontrá-la no meio e torná-la, novamente, parte de você”.

Isso foi parte do que começou um processo longo, lento e ainda incompleto de cura. A ideia de que a depressão não é externa, ela é interna. Praticamente todos os sintomas de doença que você sente são seu próprio corpo reagindo a algo. Sem dor alguma, a humanidade não teria nenhum alerta de perigo. A ideia é que você tem que assumir sua ansiedade como sendo uma “versão alternativa” da sua percepção. Mas ainda assim, uma parte de você.

Madeline decide que não vai mais lutar. Encara a Outra Madeline, e chama ela para conversar. E conversam. E alguma coisa ali se resolve, fazendo a Outra Madeline voltar a ser parte de Madeline. Isso não cria somente uma catarse emocional para a jornada da heroína, mas dá para Madeline uma habilidade extra. A partir de agora, você tem direito a um “dash aéreo” adicional.

A ideia é que você tem que assumir sua ansiedade como sendo uma “versão alternativa” da sua percepção. Mas ainda assim, uma parte de você

Parece pouco, mas se você chegou nessa parte do jogo, isso é uma revolução. Celeste é um jogo de plataforma bem complicado em grande parte, e inúmeras vezes você vai despencar porque não consegue ritmar os pulos, ou porque aquela plataforma se moveu de uma maneira surpreendente. Quando Madeline se torna completa, a jogabilidade precisa ser repensada para comportar um personagem com o dobro de poder que tinha antes.

Não que isso torne o jogo necessariamente mais fácil, mas te dá uma incrível noção de crescimento da personagem. Madeline agora é muito mais capaz, mentalmente, de comandar suas emoções, e de reagir aos eventos de sua vida de maneira bem mais saudável. E sendo um jogo de plataforma, Celeste representa esta mudança de uma maneira, bem, “platafórmica”. O controle muda, os desafios mudam, a música muda, o visual de Madeline muda. Tudo porque ela voltou a ser quem era antes.

Ela conseguiu abraçar a si mesma, inteiramente, e está muito mais perto de ser plena.

Em um momento, no meio do jogo, Madeline tem um ataque de pânico por conta de um perigo que corre. Theo, calmo e tranquilo, pede então que Madeline imagine uma pena. E então o jogo ensina para você um exercício de respiração, no qual você usa o controle do jogo para acalmar Madeline através da respiração dela, imaginando uma pena flutuando. Mecânica essa que volta mais para frente, para tirar Madeline de outra enrascada.

Celeste é uma pérola preciosa num oceano de games. Não só é acessível, divertido, engraçado e emocionante. Mas conta uma história verdadeira através dos seus personagens coloridos e cômicos. E faz isso através de tudo o que um jogo pode propor. Celeste dá mais alguns passos à frente quando se fala em “O que os games são capazes de fazer”. E faz isso sem perder a simplicidade, a ternura e nem mesmo a seriedade.

Tem tanta gente sofrendo com a maneira como a própria cabeça cria demônios gigantescos, intransponíveis, e estamos perdendo muita gente amada para este tipo de doença. Celeste é um jogo que traz o problema para o centro e fala sobre ele. E ensina. E propõe. E faz a gente encarar o mundo através dos olhos de alguém diferente. Como toda grande arte deveria fazer.

Para muita gente, chegou a hora de escalar a Montanha Celeste. E é claro, para muita gente, chegou a hora de buscar ajuda médica. Chegou a hora de perder o preconceito imbecil de que a gente consegue “apertar um botão e ficar em paz”. Chegou a hora de parar de achar que usar remédio é uma derrota. Chegou a hora de chamar doença de doença.

Porque aí, se Deus quiser, um dia, poderemos todos voltar a chamar o dia de dia. O sono de sono. A paz de “minha”. E a montanha de montanha.