A Cannon marcou a infância de toda uma geração de moleques nascidos em meados dos anos 80
Imagine o seguinte cenário: você é responsável por uma série de filmes de sucesso em seu país natal. Aí você tem a oportunidade de comprar uma produtora com problemas financeiros em Hollywood e passar a produzir na meca mundial do cinema. O que você faria?
No caso dos primos israelenses Menahem Golan e Yoram Globus, a opção foi a mais óbvia: contratar Van Damme, Charles Bronson, Chuck Norris e Stallone e encher seus filmes com o maior número possível de cenas de sexo, tiros e explosões e transformar a infância de uma geração nascida em meados dos anos 80.
A história da Cannon é bem menos edificante do que o parágrafo acima deixa parecer, já que também é recheada de sexismo, mau caratismo e muito cinema tosco. Mas o inegável impacto da produtora na cultura pop ganha ares épicos no documentário Electric Boogaloo: The Wild, Untold Story of Cannon Films, infelizmente nunca lançado no Brasil mas disponível por aí nessa nossa interwebs.
Certamente bem melhor que 99,9% dos filmes realizados pela própria Cannon, o documentário reúne diretores, produtores, atores e atrizes que passaram pelo estúdio para contar sua peculiar história que começa com a compra da Cannon pelos dois primos, em 1979.
Atuando desde os anos 60, a produtora enfrentava problemas financeiros graves e foi vendida por US$ 500 mil aos israelenses. Em pouco tempo, a dupla colocou em prática um modelo de negócio ao mesmo tempo vencedor e suicida. Inicialmente focado em produções B, com orçamentos limitadíssimos, esse modelo consistia em vender conceitos de filmes tão simplórios quanto apelativos. Conceitos que, na maioria das vezes, não eram muito mais que um título e uma ilustração em forma de pôster.
Contando com as habilidades de vendedor de Golan — que era um cinéfilo apaixonado e diretor limitadíssimo — a Cannon convenceu muita gente a colocar dinheiro em suas produções. E, seguindo uma cadeia em que o dinheiro feito por um filme ajudava no orçamento do próximo, a produtora chegou ao auge em 1986, quando lançou 43 (!!!) filmes.
Em 1986, a Cannon lançou 43 filmes. Um ano tem 52 semanas, apenas como comparação
São desse período pérolas do cinema trash de ação, como Desejo de Matar 2 e 3, Comando Delta, Invasão USA, American Ninja e Cobra (que no Brasil era chamado bizarramente de Stallone Cobra); e também comédias sacanas como O Último Americano Virgem, campeã da tecla pause em surrados videocassetes nos anos 80 e 90.
Apesar de capenga em termos qualitativos, a volumosa produção da Cannon no período encontrou um importante canal de vazão nas então populares vídeo locadoras. E, com astros da pancadaria estampados nas caixinhas em cenas com metralhadoras cuspindo fogo e ninjas em profusão, os filmes da Cannon encontram na molecada um público ávido por suas produções B.
Seu público que, diga-se, era facilmente enganado por filmes que copiavam descaradamente produções de estúdios maiores. O já citado Comando Delta não era nada além de um chupim de Rambo 2, tendo sido inclusive “inspirado” por um tratamento de roteiro para o filme do Stallone escrito por James Cameron. Já Indiana Jones perdeu muito valor de produção e orçamento e ganhou Richard Chamberlain para virar As Minas do Rei Salomão, uma porcaria com Sharon Stone no elenco que enganava direitinho a pequenos espectadores na época.
A coisa começou a azedar para a Cannon depois de 1986. Assim como na lenda de Ícaro, Golan e Globus se empolgaram com suas asas e alçaram vôos altos demais para a peculiar estrutura criada na produtora.
Dois filmes marcam essa época. O primeiro é Superman IV. Ao colocar as mãos em um dos maiores ícones pop da história, a Cannon resolveu abrir os bolsos. Infelizmente, a realidade atingiu o filme como uma bola de demolição. Seu orçamento foi cortado pela metade no meio das filmagens e o resultado está aí para quem quiser — ou conseguir — ver.
O segundo é Mestres do Universo. A adaptação do desenho animado He-Man para o cinema também teve orçamento muito além dos valores praticados pela Cannon. Apesar do sucesso do personagem na época, o filme naufragou, especialmente porque Mestres do Universo parece qualquer coisa, menos um filme de He-Man.
O fracasso de ambos os filmes, em 1987, foi um golpe pesado para a Cannon. Mas a produtora ainda deu sorte de descobrir Jean-Claude Van Damme — se é que podemos chamar isso de sorte. O belga estrelou para a empresa os clássicos da pancadaria O Grande Dragão Branco e Kickboxer. E também a ficção científica Cyborg, concebida para ser uma continuação de Mestres do Universo, por mais surreal que isso pareça.
Porém, nem o espacate de Van Damme foi capaz de salvar a Cannon, que definhou até meados dos anos 90 com filmes cada vez piores. Electric Boogaloo aprofunda ainda mais na história da Cannon, criando um retrato não muito generoso da empresa, em especial de Manahem Golan, descrito como uma pessoa sexista, violenta e não muito honesta pela maioria dos entrevistados.
Porém, é inegável o legado da produtora. O que não necessariamente é um elogio. De qualquer forma, boa parte da infância de muita gente foi marcada por seus filmes, donos de um charme tosco e — por que não? — irresistível.
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