Concordar com o Inverno | JUDAO.com.br

Vamos concordar em discordar. Eu e você. Série e livro. Stannis Baratheon e Jon Snow.

SPOILER! A arte de discordar e da multiplicação das verdades de cada um se desenrola toda vez que alguém adapta alguma coisa. Quer seja uma banda fazendo uma música cover, quer seja uma obra de quadrinhos / literatura “inadaptável” indo para os cinemas ou para a TV. Você precisa mudar as coisas. Precisa converter linguagens, precisa fazer updates.

Depois de uma temporada anterior inesquecível, na qual mais ou menos da metade para o final de cada episódio éramos surpreendidos mais e mais, o que fazer? Como seguir ápices tão intensos, alguns executados com perfeição cinematográfica? Game of Thrones jogou o nível lá em cima e, desde o Casamento Vermelho, a série vinha terminando suas temporadas gerando vídeos de “reações” pela Internet. Isso, meus amigos, é o sinal do sucesso.

Até a quarta temporada, a TV seguia de perto os livros. Mas agora, neste quinto ano, o inverno, finalmente, chegou.

E podemos dizer que “o inverno” é, de fato, o divórcio entre livro e série. Não que agora descobriremos que os White Walkers são alienígenas e que o sonho do Mindinho sempre foi ser um Rock Star. Mas a série passou os livros, e já que o Papai Noel Psicopata que atende pelo nome de George R.R.Martin não é o mais veloz escritor do mundo, os showrunners David Benioff e DB Weiss precisaram desenvolver novas soluções. Livro e série estão se tornando, a cada passo, coisas diferentes.

Não dá para dizer que os roteiristas acertaram em tudo. Afinal, até o oitavo episódio, havia um consenso de que essa era, de longe, a temporada mais fraca. Toda a trama com Jaime e Bronn, por exemplo, parecia uma interminável paródia d’Os Trapalhões. Agora que sabemos onde ela queria chegar entendemos perfeitamente seu papel de pura e fina encheção de linguiça, mesmo tendo dois dos personagens mais carismáticos como protagonistas.

Não é uma adaptação PÉSSIMA. São escolhas. São momentos em que a adaptação precisou discordar muito do livro. Pegou uma trama que não afetaria em nada a macro-trama e fez algo diferente com ela. Acontece que no nível em que Game of Thrones já tinha chegado, quem quer ver Jaime e Bronn realizando porcaria nenhuma episódio após episódio? Pelo menos uma das três serpentes de areia é uma gracinha, e o Doran Martell é um cara muito sensato (e bateu aquela saudade de Deep Space Nine!). Foi a trama mais fraca de todas, aquela com menos a dizer.

Talvez esse final chocante melhore nossa memória dela.

Game of Thrones

Quem de fato andou bem colada aos acontecimentos do livro foi Cersei Lannister). Numa trama que manteve sua qualidade a temporada toda, acompanhamos o resultado das maquinações da Rainha Mãe. Derrotada pelos próprios frenesis de fúria, Cersei provou que não sabe jogar o Jogo dos Tronos, e o trabalho de Lena Headey durante a temporada é espetacular. Finalmente enxergamos a rainha quebrada, impossibilitada de ir mais fundo no poço. Não é qualquer atriz que enfrenta aquela cena final com a bravura que ela enfrentou, com dublê de corpo ou não.

Do outro lado do mundo estava Arya Stark, em sua jornada para entrar na liga dos assassinos. Numa série em que muito se fala sobre morte, perda e subsequentemente, deixar as coisas para trás, Arya foi a personagem que mais relutou nisso. A saga de Arya é uma das mais belas adaptações do livro, com momentos inesquecíveis como o Hall de Rostos, a primeira revelação de Jaquen, a morte LONGA E TORTUOSA de um antigo desafeto e essa cena final, onde a definição de “ninguém” ganhou contornos tremendamente surreais.

A saga de Tyrion também teve profundas mudanças na adaptação, especialmente o momento emocional do anão. Senti falta de uma transformação mais visceral do personagem, que acabou de matar sua amante, seu pai, jogar seu reino num caos político e decidiu se afogar em vinho. Mesmo assim, sua parte da trama manteve-se surpreendente e divertida. Um encontro de universos diferentes, há muito esperado, finalmente aconteceu, e a série não fez feio. Um homem à procura de uma nova causa finalmente encontrou, e me deixa contente que parte dessa motivação ainda é desejo de vingança contra a própria família de tiranos.

Daenerys Targaryen conseguiu, finalmente, elevar os estandartes do dragão de três cabeças. Mas a um preço tremendo, tanto em termos de perda pessoal e de qualidade narrativa. A morte de Sor Barristan é uma das mudanças mais fajutas da temporada. No final, entendemos porque o Barba Branca precisou partir. Precisava-se de um vácuo de sabedoria, agora ocupado por um homem bem baixo. Mas a execução disso foi frustrante demais para um personagem tão querido.

Depois de ter acorrentado seus filhos, Daenerys não parou de tomar decisões duras. Isso culminou na incrível cena da arena, onde ela achava que tinha encontrado seu fim, se não fosse o DRACO EX MACHINA. Apesar de intercalar marasmo com erros grosseiros, este lado da série conseguiu se recuperar no final. O futuro de Daenerys, agora, é um mistério. Ou um rodeio.

Game of ThronesSansa Stark e Mindinho, o casal improvável, tiveram sua onda de maquinações levando-os de volta a Winterfell, base agora do novo psicopata mais odiado, Ramsay Bolton. Mindinho tecia um plano infalível, arriscando sua peça mais importante e mais cara, dando-a de presente para Ramsay usar como bem quisesse. E enquanto Mindinho ia cuidar das outras pontas soltas de seu plano, Sansa desceu ao inferno. Com o pior capeta possível.

A cena mais controversa da temporada definitivamente foi o estupro de Sansa. Um momento que não está nos livros, foi uma surpresa extremamente amarga e extremamente tensa para todo o público. Ramsay fez exatamente o que esperava-se dele e Sansa, que estava crescendo como personagem desde o final da quarta temporada, foi devolvida ao papel de coitada.

Muito se discutiu sobre o teor da cena, afinal, não existe cena de estupro de “bom gosto”. Além disso, alguns críticos mais ferrenhos ainda levantaram a bandeira de que ultimamente tem faltado criatividade aos roteiristas – porque, num mundo de fantasia como este de GoT, a única forma que eles encontram de mostrar a força de uma mulher é sempre submetendo-a a um estupro. O fato é que o horror sádico foi executado fora de quadro, e nos restou o trauma através dos olhos de Theon Greyjoy. Sansa viu, pela centésima vez na série, cada uma de suas esperanças morrerem. E só quando não restou mais nada, outra virada na trama lhe deu mais uma oportunidade de escapar. Quem aí quer uma morte lenta e dolorosa para o novo Joffrey?

A segunda cena mais controversa da temporada teve a ver com Stannis Baratheon saindo do Castelo Negro. Ele e sua tropa foram pegos de surpresa porque, aparentemente, não deram ouvidos ao principal slogan da série. E para sair da pior das situações militares, Stannis fez uma aposta terrível. Mandou a única pessoa capaz de impedi-lo, Sor Davos, para longe, e mandou sacrificar sua filha Shireen ao seu deus do fogo.

A expressão de Davos ao ouvir a notícia é de partir o coração.

Não foi uma decisão simples, nem para Stannis, nem para a série. Stannis, que já tinha assassinado o irmão e queimado vivo o cunhado, tudo por conta da magia de sangue da feiticeira vermelha, não tinha porque duvidar do sucesso mágico de queimar sua filha viva. Novamente, o horror é mantido longe da câmera, mas podemos ouvir, e podemos ver a reação das pessoas. Stannis perde a filha, a mulher, metade do exército e a guerra, além de muitos fãs.

E chegamos a um ponto muito interessante, porque nos livros Stannis ainda não avançou. Não fazemos a menor idéia do que acontece, mas esta é uma oportunidade de ouro para que Martin conserte esta pisada na bola. Stannis é considerado o melhor estrategista de Westeros, fato que na série é ignorado. O Stannis da série não tem nada do Stannis firme e resoluto dos livros. A série está contando algo que nos espera, ou os criadores decidiram inventar bonito? Há boatos dizendo que, pelo menos até a morte de Shireen, a trama segue fiel ao futuro dos livros. Se você está lendo isso no futuro e já sabe, quebre algumas leis da física, venha até o passado e conte para nós.

E já que vai fazer isso, nos conte sobre Jon Snow. Ah, Jon Snow. Jon Stark.

Ali, no oitavo episódio, quando achávamos que a temporada ia ficar num marasmo eterno, os produtores decidem nos presentear através de Jon Snow. Numa trama paralela, totalmente inventada para a série, Jon acompanha Tormund até o local onde muitos selvagens se abrigam para recrutá-los. E no meio da discussão, os White Walkers atacam. E o resultado é sublime. Se você achava que o final da temporada anterior, com fireballs e esqueletos a la Ray Harryhausen, já estava Dungeons & Dragons demais, e gostou disso, essa batalha é para você. Jon Snow e o público saem dali entendendo por A+B que os White Walkers são a pior coisa do mundo, e que nada irá impedi-los. O Rei da Noite criou um momento de terror icônico no final de uma sequência sem precedentes na televisão.

E ainda tinha um gigante.

Jon passou a temporada toda tentando criar uma consciência de que “somos todos humanos” na cabeça antiquada da patrulha de corvos. Começa a temporada com uma demonstração de solidariedade para com um homem que admirava, Mance Rayder. Uma flecha, e o cara não queimou até a morte. Vemos a força de seu personagem, preso entre dois mundos que se odeiam, tendo que tomar as decisões mais impopulares do mundo, e pagando caro por isso.

Assim como Stannis, como Cersei, como Daenerys e como Ned Stark, Jon descobriu que tudo tem um preço.

Game of Thrones

Jon Snow é o veículo transmissor de trauma dessa temporada (apesar de que os gritos da Shireen vão me assombrar até o túmulo). É a morte coringa, aquilo que será comentado e descomentado aos montes nas eras a seguir. Mesmo sendo referenciada a temporada toda, ninguém escapou do impacto dessa surpresa. Os produtores, roteiristas e o próprio Kit Harrington invadiram as redes sociais dizendo aquilo que todos temem: Jon morreu. Morte matada morrida. E que morto não volta.

Posição ligeiramente diferente do Martin, que disse que “morte nenhuma deve ser levada como fato consumado nos livros”. Apesar de também ser o cliffhanger da versão literária, muitas coisas (muitas mesmo) indicam que talvez Jon tenha uma ajudinha para não bater as botas de vez. Desde o mistério sobre seu parentesco até a presença de uma certa deusa, louca, feiticeira nos arredores. Se você leu os livros, sabe que uma quantidade impressionante de pessoas não ficou descansando depois de morto.

O livro vai seguir uma estrada, e a série vai seguir outra. Os leitores vão precisar aceitar isso sem espernear. O próprio George R.R. Martin já expressou alegria no fato de que ele pode, agora, contar duas histórias. O medo está somente no fato de que não existe muita confiança nos produtores da série inventando coisas. Quanto mais longe do livro, mais bobocas ficam as tramas, mais banais a execução das cenas.

O inverno chegou, e agora tudo tá um caos. Game of Thrones manteve-se na mesma direção: para frente. O status quo de nenhum personagem mantem-se igual de episódio a episódio. Isso continua sendo o maior trunfo, e só podemos torcer para que continue assim, só que com menos enrolação.

Serão dez meses de espera, especulações, gente discordando de gente. Gente concordando. Gente relendo os livros e sacrificando pessoas ao deus do fogo para que o Martin termine logo o próximo. Tanta gente que vai pegar em armas e vai se lançar contra os produtores por causa das escolhas deles. Por mudanças. Quando o próximo livro chegar então, nem se fala.

Em algum lugar, tem um senhor com sua barba branca e uma boina, rindo de todos nós.