Game BR quer mostrar toda a fúria de Araní, guerreira da Tribo do Sol | JUDAO.com.br

Ainda em desenvolvimento, jogo brasileiro da Diorama Digital traz para o papel de protagonista uma versão feminina do Kratos só que de origem indígena e com sangue nos olhos pra derrotar inimigos saídos da mitologia sul-americana

Quando batemos um papo com o autor da saga literária A Bandeira do Elefante e da Arara, um dos primeiros assuntos foi justamente o quanto nos parece absolutamente normal e trivial ver por aí as mitologias de povos como os nórdicos, os celtas e principalmente os gregos & romanos sendo abordadas e absorvidas pela cultura pop em gibis, filmes e a coisa toda. Odin e Zeus tá tudo bem. Mas é só alguém reinterpretar um curupira ou um boitatá pro fã brasileiro ficar “mas olha só, que PECULIAR, que CURIOSO, que EXÓTICO, não é mesmo?”.

A gente tenta mostrar cada vez mais isso acontecendo justamente pra tornar a parada toda mais natural, pra mostrar que faz parte, que temos que ter um baita orgulho do nosso folclore porque ele também gera histórias muito incríveis — e que nem só de elfos, dragões, orcs e ciclopes vive o universo da fantasia. Vejamos o mundo dos joguinhos: pois se lá fora temos o Kratos encarando deuses e criaturas mitológicas a rodo em busca do seu destino, por aqui habemus a índia guerreira Araní, valorosa integrante da Tribo do Sol em uma jornada para salvar seu povo da influência do Taú, um espírito maligno que foi aprisionado pelos deuses e agora busca vingança.

Pois é, isso tá acontecendo de verdade mesmo, no jogo que carrega o nome da protagonista e está em fase de desenvolvimento pela empresa pernambucana Diorama Digital. Este primeiro teaser pra dar um gostinho da jogabilidade tem um visual impressionante, mostrando a jovem empunhando a lança sem dó no melhor estilão hack & slash, encarando um exército de monstrengos cambaleantes que lembram o Corpo-Seco (aquele que, quando morreu, nem o céu e nem o inferno aceitaram) e logo depois um enorme monstrão claramente inspirado no Saci.

“A resposta foi fantástica: em menos de 2 dias, o vídeo já estava com mais de 100.000 visualizações apenas no YouTube”, comemora Everaldo Neto, Diretor de Arte e co-fundador do estúdio Diorama, em entrevista ao JUDAO.com.br. “Recebemos milhares de mensagens de apoio, foi de certa forma uma surpresa pra nós a velocidade que tudo aconteceu e a aura positiva gerada”.

Everton conta que o foco inicial tanto do vídeo quanto do próprio jogo era apresentar nossa mitologia para o público do exterior — e, honestamente, eles não achavam que o game ia ter uma aceitação tão boa por parte do público nacional. “Bem no início, quando falávamos da ideia, várias pessoas apoiavam, mas muita gente também torcia o nariz, dizendo que a gente devia explorar a mitologia nórdica. Pra nossa surpresa, o público nacional aceitou muito bem o que foi apresentado até o momento”.

Ele revela ainda que o time da Diorama já vinha conversando há alguns anos sobre a possibilidade de fazer um game utilizando a mitologia da América do Sul como base, mas direcionando para um público mais velho, para poder tratar a coisa toda até de forma mais forte, mais violenta. “Claro que muito do nosso folclore acaba sendo abordado, mas queríamos que esse material fosse abordado de uma forma mais madura”.

Conforme os profissionais de desenvolvimento da história começaram a pesquisar e estudar o assunto a fundo, no entanto, logo perceberam que não há uma mitologia central determinada no nosso continente. “Em vez disso, encontramos vários mitos nativos da América do Sul, nas mitologias Tupi, Tupi-Guaraní e Guaraní. Há pouco registro escrito destas mitologias e a maioria do que sabemos foi obtido através de entrevistas e relatos orais, o que gera mais inconsistência”, afirma ele. Então, a opção foi justamente por fazer um universo ficcional que seria um apanhado destas mitologias, com referências aos mitos mais comuns, frequentemente compartilhados por mais de uma cultura nativa.

Além do Corpo-Seco e do Saci, ele evita dar mais nomes sobre outras figuras conhecidas do nosso folclore e dos povos vizinhos que vão dar as caras no jogo justamente pra não estragar a surpresa. O mesmo vale para mais detalhes da história. Só o que ele garante é que a jogabilidade, claro, terá elementos que lembram God of War, mas que a principal inspiração é mesmo a série japonesa Devil May Cry.

Dos boletos pagos à realização de sonhos

Fundada em 2014 por Everaldo e pelos amigos Alex Rodrigues e Bruno Marques, todos artistas 3D que começaram a carreira na hoje finada Playlore Gameworks, a Diorama é um estúdio focado no chamado external development, produzindo arte para jogos digitais. No início, o foco da empresa era ganhar uma grana replicando ambientes em realidade virtual para o mercado imobiliário, mas aos poucos eles começaram a voltar ao que gostavam e sabiam fazer de fato, oferecendo serviços de produção de arte para jogos. No currículo dos caras estão propriedades como The Elder Scrolls Online, Star Wars Galaxies e DC Universe Online, entre outros.

A divisão de desenvolvimento começou após alguns trabalhos envolvendo jogos para campanhas publicitárias — e então em 2016 surgiu a oportunidade de viabilizar o projeto Araní. Mas a coisa só começou mesmo a sair do papel e do mundo dos sonhos de fato quando o jogo foi contemplado, em 2017, no edital da ANCINE (PRODAV 14/2016), na principal categoria, consolidando assim a divisão de produção de jogos deles.

“Ué, ANCINE?”, você deve estar se perguntando. “Mas eles não cuidam só de cinema?”. Então... não. Na verdade, o foco do órgão acaba sendo em produção audiovisual, como um todo, como foi a intenção desta chamada pública conjunta do BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul) e do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). “Esta chamada destina-se à seleção, em regime de concurso público, de propostas de produção de jogos eletrônicos para exploração comercial em consoles, computadores ou dispositivos móveis, visando à contratação de operações financeiras de investimento”, define o site oficial. A Diorama foi pra cima e conseguiu.

O sócio da Diorama, aliás, faz questão de ressaltar que a iniciativa do edital foi essencial para tornar possível a execução do projeto, já que ainda estamos engatinhando no Brasil no que diz respeito a investimentos e incentivos para a indústria de games. “Sem dúvidas a iniciativa da ANCINE/FSA em fomentar essa indústria já foi um bom começo e mostra um interesse por parte da ANCINE de expandir sua abrangência na área do audiovisual”. Neste caso, vale lembrar, estamos falando de um investimento BEM diferente da Lei Rouanet: aqui, o investimento é direto. Portanto, o estúdio recebe a grana diretamente do governo.

“Mas, além de ter todo um processo bem minucioso de prestação de contas, o dinheiro retorna ao Fundo Setorial do Audiovisual à medida que o jogo é vendido”, explica ele. “Afinal, o fundo tem participação na receita gerada pelo produto ou qualquer derivado do mesmo por 7 anos”. De qualquer maneira, em 2018, com a liberação do aporte financeiro, o projeto foi oficialmente iniciado e caras estão com a produção a todo vapor. “Na fase atual do projeto temos cerca 15 pessoas envolvidas no desenvolvimento. Devemos em breve passar pra uma nova fase, na qual precisaremos duplicar essa equipe”, afirma.

E por falar em equipe, vale ressaltar ainda a participação, na trilha sonora, do quarteto de Brasília chamado Arandu Arakuaa, competente banda de folk metal nacional com a qual o JUDAO.com.br inclusive já conversou aqui. “A ideia de incluir a Arandu Arakuaa no game surgiu pouco antes de nós submetermos o projeto para aprovação. Já conhecíamos e gostávamos muito do trabalho da banda e achamos que suas músicas tinham tudo a ver com a proposta do jogo”, detalha. “Entramos em contato com Zândhio, líder da banda, falamos sobre o projeto, ele curtiu a ideia e topou encarar essa jornada com a gente”.

Tudo isso rolou antes que o grupo começasse a gravação do novo álbum deles, Mrã Waze, lançado este ano, o que acabou fazendo com que a produção do jogo acabasse influenciando de certa forma nas composições das novas canções. “O jogo terá material exclusivo, mas também vai contar com canções já existentes da banda”.

Atualmente em negociações com possíveis publishers, o jogo Araní não tem uma data de lançamento confirmada ainda, mas eles podem dizer que estão produzindo principalmente com foco no Xbox One, PS4 e PC. “Estamos estudando com muito carinho a possibilidade de uma versão para Nintendo Switch”, completa Everton.