Responsável pelo Cabeça de Teia nos quadrinhos, o roteirista Dan Slott traz apenas verdades (e esperança!) em suas palavras
Enquanto ainda esperávamos o Carnaval chegar (ainda que pra muitos ele tenha começado naquela madrugada de segunda pra terça), tivemos a infelicidade de contrair sífilis ocular, lá na nossa página do Facebook, quando um imbecil — que eu espero que seja também ex-leitor do JUDÃO — soltou alguns comentários nojentos, intolerantes, racistas acerca da escolha do novo Homem-Aranha.
Pra ele, e pra muita gente, o Homem-Aranha é branco e assim deve continuar, porque “empretejar herois brancos” é inaceitável (sério, ele disse isso, com essas palavras). A desculpa sempre recai em “nos quadrinhos é assim”, assim como aquele pessoal diz que é tudo “pela ética no jornalismo”, ou ainda que “torcida única” resolve o problema da violência de torcidas organizadas, mas, também como sempre, é só uma maneira de fingir que não é racista, misógino, despreparado ou um completo idiota.
No caso específico das HQs, que é o que nos importa aqui nesse momento, apesar de usar como desculpa a “parecência”, muitos vestem mesmo a carapuça do desconhecimento. “Em 50 anos de Homem-Aranha, outras culturas, outras mídias... Há muitos tipos diferentes de Homens-Aranha”, disse, numa entrevista ao Verge, o atual responsável pelos roteiros do Cabeça de Teia nos quadrinhos, Dan Slott. “Tem o Pavitr Prabhakar, da Índia, em outra realidade. Tem o live-action japonês que tem um robô gigante, um carro de corrida voador e uma nave. Tem um universo em que ele é um porco, chamado Peter Porker”, lembra, deixando de citar ainda os universos em que a Tia May e o Tio Ben são Homens-Aranha, todos apresentados por ele ao mesmo tempo dentro da recente saga Spider-Verse.
“Nós contamos essa história divertida em que a única coisa que você precisava saber era que nós pegamos todos esses brinquedos na caixa, todos desses 50 anos, e jogamos pro ar fazendo uma grande aventura. E, agora que acabou, não é que o Peter saiba que ele é o único e real Homem-Aranha, porque todos aqueles Homens-Aranha são os verdadeiros. Seja lá qual for o Homem-Aranha que você goste, ele é o real Homem-Aranha”, disse, carregado de verdades em suas palavras, Slott.
O tal comentário do cara que, vergonhosamente, um dia leu este site, veio com a notícia de que o Homem-Aranha passaria pro lado Marvel da força, que imediatamente colocou um ponto de interrogação até outro dia INIMAGINÁVEL na cabeça dos fãs: QUAL Homem-Aranha veríamos nas telonas?
Não, ninguém chegou a cogitar o Ben Reilly (pelo menos, ninguém em sã consciência, imagino). A discussão acabou ficando centralizada mesmo entre Peter Parker e Miles Morales, o Homem-Aranha ~oficial e o Homem-Aranha do Universo Ultimate, que tem servido de grande inspiração para os filmes da Marvel Studios desde o começo.
Quem defende o jovem rapaz latino-americano (sem dinheiro no banco), defende também a renovação total no que já se viu da história do Teioso nos cinemas, começando do zero, esquecendo aquela dancinha, esquecendo aquele Lagarto, esquecendo o Tio Ben, esquecendo a Gwen Stacy; quem prefere o amigão da vizinhança defende a ideia de que, enfim, poderiam ver AQUELE cara nos cinemas. Aquele que conheceram quando começaram a ler, que teve uma decepção enorme com a namorada, que depois hittou o jackpot...
Existe também a parte que defende El Niño Morales pela questão da diversidade. O Homem-Aranha não é, hoje, o principal personagem da Marvel nas telonas. Mas seria historicamente importante se por acaso ele fosse, além de tudo, latino AND negro. E, veja só: o simples fato de ele estar sendo cogitado, queira o nosso amigo ou não, mostra que a Marvel mais do que acertou ao criar essa versão do personagem, que se identifica muito mais com a sociedade de hoje.
Com esse pensamento em mente (lembre-se dos e-mails vazados, das acusações...), aliás, a Sony estaria cogitando seriamente em transformá-lo no novo Homem-Aranha dos cinemas. De acordo com Jeff Sneider, repórter do Wrap e apresentador do Meet the Movie Press, um podcast muito legal pra você que curte o nosso trabalho entender um pouco mais como as coisas funcionam, há “95% de chances” de que o novo Teioso seja negro e/ou latino e não se chame Peter Parker. Você pode ouvir aqui, a partir de 44min30segs.
O fato é que, tirando o Kevin Feige e, se ele for benevolente o bastante, a Amy Pascal, ninguém sabe qual será o novo Homem-Aranha, que vai comer shawarma com Tony Stark & Friends. É, não apenas “quem será o novo Homem-Aranha”, no sentido de qual ator vai interpretá-lo, mas também “qual será o novo Homem-Aranha”, no sentido de qual versão do personagem veremos na tela. E essa é a melhor parte da entrada do Cabeça de Teia pro Universo Marvel dos cinemas. A razão é simples e, mais uma vez, Dan Slott diz a verdade, nada além disso: “O Homem-Aranha pode ser qualquer um”.
“Peter Parker é um nerd, excluído. Qualquer um, de qualquer classe social, pode ser um nerd excluído”, afirma, com razão, ao defender a ideia de que a Marvel / Sony, pelo menos, permitam que qualquer ser humano (ou porco, talvez) possa fazer testes pra interpretar o personagem. “Não há nada inerentemente branco sobre Peter Parker”.
E, de fato, não há. Além das trocentas versões aleatórias em realidades alternativas, são raríssimos os casos em que a cor da pele / etnia interfere de fato num personagem, tirando o tom que o colorista usa na hora de pintar. Tony Stark poderia ser negro, Kal-El poderia ser negro, Johnny Storm poderia ser negro, Mulher-Maravilha poderia ser negra. Homem-Aranha poderia ser negro. Ele, aliás, poderia ser uma mulher, poderia ser brasileiro... Ele, literalmente, poderia ser você. Ou alguém aqui do JUDÃO (tem dois caras na equipe que adorariam a oportunidade, BTW. O outro não caberia no uniforme).
Mas o mais importante, aqui, é que ATÉ O PETER PARKER poderia ser negro. Ou mulher. Ou gordo. Ou qualquer coisa. “Uma das razões pelas quais o Homem-Aranha fala com todo mundo, em todo o mundo, é a máscara. Conheci muitos jovens fãs do personagem, que cresceram e hoje estão velhos, que quando encontraram o Homem-Aranha pela primeira vez eles meio que não sabiam quem estava sob a máscara. E isso dá a liberdade pra ele ser qualquer um. A liberdade pra ele ser como você. Seria muito legal se rolasse essa possibilidade. Mesmo que acabem escalando quem, no fim do dia, se pareça com o Peter Parker, seria legal se a porta estivesse aberta e eles dissessem que ‘O Homem-Aranha pode ser qualquer um'”, disse o roteirista.
Quando Dan Slott começou a aprontar das suas à frente do título do Escalador de Paredes, ninguém se convenceu muito do que ele estava disposto a fazer, mesmo aqui dentro do JUDÃO, só como exemplo. Parecia ser mais um maluco querendo reinventar a roda. Assim que ele começou com esta história de Homem-Aranha Superior, foi um chororô só. Mas, diabos, o homem insistiu. Perseverou. E mostrou a que veio. Com seu Otto Octavius no corpo de Peter Parker, ele fez um dos títulos mais divertidos da Marvel em muitos anos. Conseguiu, usando o Doutor Octopus, reforçar as melhores facetas de Peter Parker – que foi recebido de braços abertos assim que voltou.
É mais do que óbvio que Slott é fã de carteirinha do Homem-Aranha. Um nerd declarado, apaixonado pelo que faz. Seguir o sujeito no Twitter é uma delícia, porque seus comentários são claramente os de um maníaco por HQs realizando um sonho. E seus comentários comprovam que ele entende a ESSÊNCIA do personagem. Do menino de óculos que Stan Lee idealizou como sendo a cristalização de todo e qualquer adolescente que estivesse lendo aqueles gibis naquele momento.
“Eu gostaria de ver o Peter no cinema da mesma forma que ele é nos quadrinhos”, escreveu um sujeito para Dan Slott no Twitter, tentando defender que Peter Parker, diabos, seja o mesmo moleque caucasiano do Queens. E Slott, inteligentemente, respondeu: “ah, tudo bem, aí a gente vai e muda os gibis”. Detalhe: da última vez em que prometeu que faria isso, Slott foi lá e cumpriu. E fez a sua sexta-feira muito louca bem direitinho. Não tenho qualquer dúvida de que ele faria de novo. E agora dá pra falar com certeza: ainda bem. :)