David Bowie, o Coringa | JUDAO.com.br

O músico inspirou alguns personagens da cultura pop e dos quadrinhos, como o Lúcifer, mas é como o eterno vilão do Batman que a ligação se torna ainda mais profunda

É bastante comum que artistas de HQs usem rostos, poses e expressões de pessoas conhecidas na composição de seus personagens. Há casos famosos, como o do Samuel L. Jackson sendo a base do Nick Fury do Universo Ultimate da Marvel muito tempo antes de um certo filme do Homem de Ferro, ou o do cantor Sting servindo de base para o Constantine. Mas há outros menores, indo desde quadrinistas que usam imagens de atrizes pornôs ao Alex Ross que, por exemplo, transformou o pai no Reverendo Norman McCay de O Reino do Amanhã, passando pelo Norman Osborn com cara do Tomy Lee Jones ao ser desenhado pelo Mike Deodato.

David Bowie também serviu de inspiração pra vários personagens.

No cinema, Michael Fassbender afirmou ter usado o cara como inspiração para a criação do David, de Prometheus, enquanto Michael Sheen disse que o Castor / Zuse de Tron: O Legado, é tipo um “Ziggy Stardust albino”. Nos quadrinhos, o músico foi inspiração pra ninguém menos que Lúcifer, o anjo caído e senhor do Inferno das histórias de Sandman – e que, agora, vai ganhar uma série de TV só sua, com estreia marcada para o dia 25 deste mês. O personagem estreou na edição 4 de The Sandman e o roteirista Neil Gaiman deixou bem claro com quem ele deveria ser parecido. “Neil cismou que o Diabo era David Bowie”, disse Kelley Jones, que assumiu a arte do título algumas edições depois, no livro Passeando com o Rei dos Sonhos, publicado no Brasil pela HQM há alguns anos. “Ele disse, simplesmente: ‘é ele. Você precisa desenhar o David Bowie. Encontre David Bowie ou eu mando David Bowie para você. Porque, se não for o David Bowie, você vai ter que refazer até que seja o David Bowie”.

É fácil entender as referências do Gaiman: Lúcifer, apesar de ser o senhor do inferno, ainda é um anjo caído. E Bowie conseguia como ninguém juntar esse lado andrógino com uma expressão mais maquiavélica. Fora que o artista teve todo aquele envolvimento com o satanismo, com o OCULTO.

Lúcifer

Outro personagem criado para se parecer com o cara foi o Noh-Varr, o Marvel Boy, criado no ano 2000 pelo roteirista Grant Morrison e pelo artista J.G. Jones. Tudo era parte de uma linha mais experimental, chamada Marvel Knights, com foco mais adulto. Apesar de ter tido uma revista própria e algum destaque, dá pra dizer que o personagem nunca decolou. De qualquer forma, essa foi a primeira grande demonstração da ligação de Morrison com Bowie – e, de certa maneira, precursor do que ele faria com o Jóker, o Palhaço... o Coringa.

“Quando o Coringa foi introduzido nos anos 1940, ele era um maníaco homicida de cara feia. Então, eles tiraram toda a violência e a morte, e ele se tornou um palhaço risonho, dirigindo por aí seu Coringamóvel. Em seguida, ele foi uma versão do paciente mental da série de TV, do Cesar Romero com seu bigode coberto por pó de arroz. De repente, na década de 1970, ele estava matando seus capangas novamente. E, nos anos 1980, ele era um travesti andrógino. Eu disse ‘ok, nós temos todas essas variações do Coringa. Vamos dizer então que são a mesma pessoa que muda sua cabeça todos os dias. Eu racionalizei dizendo que ele é super são, o primeiro cara do século XXI que está lidando com essa sobrecarga de informações, alterando sua personalidade. Eu gosto bastante dele, porque ele é um pop star – ele É Bowie”, afirmou o próprio Morrison em 2012, numa entrevista para a revista Playboy.

Morrison chegou ao Batman em 2006, substituindo James Robinson, e, logo na primeira história, em Batman #655, já colocou o Coringa num arco que também introduziria Damian, o filho do Morcegão com a Talia al Ghul. A passagem do roteirista britânico foi longa, um dos pontos altos da história recente do herói — e, durante todo esse período, o Coringa foi justamente camaleônico.

“Eu penso que o Coringa mais moderno que estamos acostumados se tornou excessivamente familiar, e ele realmente não nos assusta como o Coringa deveria fazer”, disse Morrison ainda em 2008, num papo com o IGN. “Então eu voltei para o nervosismo original, mas ao mesmo tempo que o tornei-o um pouco mais moderno. As pessoas estão acostumadas a certos tipos de energia dos filmes de horror, e esse tipo de coisa, alguém como o Coringa deve ser mais assustador do que isso. Então, eu trouxe esse tipo de bizarrice europeia, esse tipo de viciado em heroína com essa vibe de David Bowie de Berlin dos anos 70, e realmente explorar essas mudanças de personalidade para o Coringa”.

Bowie em O Homem que Caiu na Terra, de 1976

Bowie em O Homem que Caiu na Terra, de 1976

O roteirista se refere ao Bowie no momento em que ele se mudou para Berlin Ocidental, no final de 1976, interessado no crescimento da cena musical da cidade naqueles tempos de Alemanha dividida e Guerra Fria. Lá ele produziu uma trilogia de álbuns, Low, Heroes e Lodger. Uma fase importante da carreira do músico, com uma sonoridade particular – como quase todas as diferentes fases dele. Na abertura dos anos 1980, o cara já estava em outra. Mais pop, mais New Wave.

A inspiração não acaba aí. Ainda em 1976, antes de se mudar para Berlin, Bowie havia assumido a persona do Thin White Duke, com aquelas roupas estilo cabaré e que apareceu no tour do álbum Young Americans e é bastante identificado com o álbum seguinte, exatamente de 1976, chamado Station to Station. Uma época que o próprio músico afirmou que vivia a base de “pimentas vermelhas, cocaína e leite”. Pode-se dizer também que essa coisa “aristocrata maluco” da fase do Duke é outra influência para o Coringa do Morrison. “[O Coringa] recebeu essa atmosfera de cabaré – ligeiramente desprezível e decadente”.

Coringa em Batman: RIP

Coringa em Batman: RIP

Só que tudo isso não foi o bastante pro Morrison, não. Ele resolveu deixar a ligação entre Coringa e David Bowie ainda mais clara na penúltima parte daquele que ele mesmo definiu como o CLÍMAX da passagem dele pelo Homem-Morcego, a saga Batman: RIP. O penúltimo capitulo se chama justamente The Thin White Duke of Death, publicada em Batman #680, de 2008. Na história, o grupo Luva Negra falha ao tentar acabar com o Batman e acaba recorrendo à ajuda do Coringa, o que acaba sendo ainda pior para eles.

Vale dizer que não foi só Grant Morrison que explorou essa ligação. Quando Batman, aquele filme de 1989, estava sendo pré-produzido, chegaram a cogitar o próprio Bowie para o papel do Coringa — que acabou, como todo mundo sabe, ficando nas mãos de Jack Nicholson. Além disso, pra muita gente ele era o cara perfeito pra interpretar o mesmo vilão numa adaptação live action de O Cavaleiro das Trevas, a clássica graphic novel do Frank Miller.

Não vai rolar, infelizmente. Mas não importa: David Bowie será sempre o Coringa.