A delicada relação entre Marvel e Fox | JUDAO.com.br

Ou: entenda porque o Quarteto Fantástico pode simplesmente sumir dos gibis durante um tempo…

Vamos ser honestos: é totalmente compreensível que os espectadores eventuais não entendam lá muito bem esta zona que acontece com os filmes de super-heróis. O Homem de Ferro, o Thor, o Capitão América, o Hulk se encontram, suas histórias se cruzam e eles até formam um supergrupo de heróis nos cinemas. Mas por que o mesmo não acontece com o Homem-Aranha? E com os X-Men? O Quarteto Fantástico? Imagine só então a confusão ficando ainda maior se, por acaso, o sujeito que viu o filme no cinema resolve arriscar pegar um gibi atual dos Vingadores e perceber que o Cabeça de Teia e o Wolverine são membros do grupo? E que o Reed Richards forma, junto com o Homem de Ferro e com o Professor Xavier, um lance supersecreto chamado Illuminati? É pra pirar a cabeça do caboclo, não?

Pode parecer simples explicar que a Marvel só tem um estúdio próprio de cinema há pouco tempo. E que, antes disso, ela tinha negociado os direitos cinematográficos de alguns de seus personagens com outros estúdios, em particular os do Homem-Aranha (e demais personagens relacionados) com a Sony e os dos X-Men e do Quarteto Fantástico (e tudo que gira ao redor destas duas franquias) com a Fox – situação que começou, aliás, no pior momento da Marvel. Mas calma, guarda isso na cabeça, falaremos mais pra frente.

Talvez não seja tão simples de explicar – e, para alguns iniciados no mundinho nerd, ainda é complicado de entender – que estes contratos são grandes, extensos e que, por mais que se queira, não podem ser quebrados de uma hora para outra. Assim sendo, o sonho de ver um filme do Homem-Aranha feito pela própria Marvel, por exemplo, pode demorar mais do que você imagina. Ou nunca acontecer. E com o licenciamento dos direitos, a Marvel tem pouquíssimo (ou praticamente nenhum) poder criativo sobre os filmes que são produzidos pela Fox e pela Sony. Ou seja: se você não gostou de um filme dos X-Men, não adianta botar a culpa na Marvel. Não tem muito que ela possa fazer agora. É o fantástico mundo do juridiquês, que torna a realidade toda bem menos interessante do que deveria.

Recentemente, no entanto, veio à tona uma notícia de bastidores que tornou uma situação bem clara: a diferença entre o relacionamento que a Marvel tem a Fox e o que ela tem com a Sony. Informantes do confiável (que, às vezes, só exagera um pouco) site Bleeding Cool dão como certo que, em breve, os gibis do Quarteto Fantástico e do Quarteto Fantástico Ultimate sairão de circulação. Ainda que se saiba que a situação deve ser temporária, já que os seus personagens poderão ser vistos frequentemente em outros títulos da editora, sabe-se também que o objetivo é um só: não ajudar a Fox a bombar o reboot do Quarteto nos cinemas, em detrimento dos negócios de sua empresa-mãe, a Disney.

quarteto

“Por que não fizeram isso também com os X-Men?”, você pode me perguntar. E eu te respondo: porque a Marvel tem quase uma dezena de títulos mutantes em circulação. Seria mais um tiro no pé do que qualquer outra coisa (não que a ação com o Quarteto possa ser considerada genial, mas a questão que estamos discutindo aqui não é essa). E porque a franquia dos X-Men nos cinemas é muito mais forte e muito mais estabelecida. Ou seja: o efeito em termos de público seria praticamente nulo. Esse não é o caso do Quarteto, que teve dois filmes anteriores que tiveram pouco efeito na popularidade dos sujeitos junto ao fã eventual, em qualquer que seja a mídia.

(De qualquer forma, é bom registrar, a Casa das Ideias tem cada vez mais dado poder aos Inumanos nos gibis, o que cheira a uma tentativa de, com o tempo, diminuir nem que seja um pouco o poderio mutante nas HQs).

“Por que não fizeram isso também com o Homem-Aranha?”, você pode me perguntar. Fizeram o contrário, aliás. Trouxeram Peter Parker de volta da confusão de troca de mentes justamente a tempo para o lançamento do segundo O Espetacular Homem-Aranha, concentrando esforços. Poderia te responder dizendo que é o personagem mais importante da editora, o que seria, isso sim, um tiro no pé com uma bazuca. Mas a razão não é nenhuma, destas. A razão é porque a franquia do Homem-Aranha nos cinemas é regida pela Sony, e não pela Fox.

Cabe aqui também um pouco de história. Os direitos da adaptação para as telonas do Escalador de Paredes estiveram em negociação por Hollywood durante anos, como parte do sonho cultivado inicialmente por Stan Lee, lá em seus primeiros dias como o chefão da Marvel, de levar os personagens para o mundo do cinema e da TV. E estas negociações geraram uma verdadeira teia, com o perdão do trocadilho, passando de estúdio para estúdio e criando uma confusão que deu, durante décadas, uma tremenda dor de cabeça para a Casa das Ideias. Foi pra lá, foi pra cá, caiu na mão de um, que perdeu, processou o outro, que ameaçou a Marvel. Virou uma batalha judicial justamente em um dos momentos mais delicados da história da editora. Resolver isso tornou-se uma das principais missões de cada um dos CEOs que assumia a bucha de canhão que foi a Marvel entre as décadas de 1980 e 1990. Nenhum deles durou o bastante.

Você sabia, por exemplo, que o finado estúdio Carolco Pictures (O Exterminador do Futuro 2, Rambo) detinha os direitos e, durante anos, James Cameron, o mesmo James Cameron de Titanic e Avatar, esteve ligado ao projeto? Ele até escreveu um roteiro para o Homem-Aranha, sendo o primeiro a surgir com a ideia dos lançadores de teia orgânicos, que seria usados por Sam Raimi depois. Leonardo DiCaprio foi considerado para o papel de Peter Parker, numa trama que traria uma abordagem um tanto mais sombria (contendo até uma cena de sexo dele com Mary Jane no topo de um prédio) e cujo vilão seria, vejam, o Electro – mas aqui, transformado numa espécie de robô que podia absorver informação dos computadores só tocando neles. Uma bagunça.

Mas, enfim. A luta nos tribunais começou, a Carolco não conseguiu segurar a bronca, o projeto de Cameron foi engavetado. Quem acabou resolvendo a questão, muito depois, foi um nome que os fãs conhecem bem: Avi Arad. Em meados da década de 90, Arad era um dos donos da Toy Biz, importante fabricante de brinquedos dos EUA. Toy Biz Inc. e Marvel Entertainment Group fundiram em 1996, criando a Marvel Entertainment que existe hoje. Arad, que já acumulava o cargo de CEO da Marvel Films, comandou a criação da Marvel Studios ainda 1996 a partir da antiga empresa e foi um dos principais responsáveis por desenrolar os pepinos jurídicos e negociar o aracnídeo com a Sony. Assim veio Tobey Maguire, o primeiro filme do Aranha... E o resto é história.

Sam Raimi, diretor dos primeiros filmes do Homem-Aranha

Sam Raimi, diretor dos primeiros filmes do Homem-Aranha

A Marvel não ganha lá muito dinheiro com o licenciamento dos direitos cinematográficos do Homem-Aranha para a Sony – mas foi uma grana importante pra quem mal conseguia quitar as contas lá nos anos 90. E com a aquisição da Marvel pela Disney, a Sony até concordou em abrir mão dos direitos do Aranha para a TV (repare que os desenhos dele agora estão nos canais da Disney) – em troca de uma ampliação de seus lucros com os filmes. Mas, senhoras e senhores, eis o pulo do gato. A Marvel ganha grana nesta brincadeira, de fato, porque dentro do conglomerado Marvel Entertainment existe uma empresa chamada Spider-Man Merchandising L.P. Trata-se de uma joint-venture da Marvel com a Sony Pictures Consumer Products, Inc., que detém os direitos de licenciamento dos produtos relacionados aos filmes do Homem-Aranha.

O que isso quer dizer? Saiu um filme do Homem-Aranha? Com ele saem dezenas de bonequinhos, camisetas, mochilas, lancheiras e toda uma tonelada de tranqueiras dizendo O Espetacular Homem-Aranha. E aí, meus queridos, a Marvel ganha muito dinheiro. Ao lado da Sony. Como parceiras comerciais.

Sacaram por que a Marvel se dá bem com a Sony? Entenderam por que a Sony chegou a até a pensar em liberar o prédio da Oscorp para integrar a paisagem novaiorquina, de relance, no filme dos Vingadores?

Pois é. A relação com a Fox, no entanto, é bem diferente. E muito mais tumultuada. Eu diria até azeda.

Todo mundo lembra, por exemplo, das trocas de farpas publicamente com relação aos personagens Mercúrio e Feiticeira Escarlate? Parte do panteão dos mutantes (ambos são filhos de Magneto e ex-integrantes da Irmandade de Mutantes), eles estão numa espécie de limbo de direitos autorais. Afinal, nos quadrinhos, também foram membros dos Vingadores durante muito tempo (e ainda são, na verdade, aparecendo bem mais nos gibis da trupe do Capitão América do que nas revistas X.

Ou seja, em tese, tanto a Marvel quanto a Fox poderiam usá-los. A Marvel, claro, jamais poderia dizer que eles são mutantes e muito menos sequer citar o Magneto. Ambas optaram pela utilização dos personagens – na verdade, a Fox só usou, até o momento, o velocista Mercúrio. Mas não deixa de ser bizarro que o mesmo personagem seja interpretado por atores diferentes em tramas e ambientações completamente distintas. E com empresas que, pelas declarações dadas, parecem estar fazendo isso por birra, como que querendo mostrar quem é mais forte.

Bryan Singer, o primeiro cara a levar os X-Men aos cinemas

Bryan Singer, o primeiro cara a levar os X-Men aos cinemas

Tudo começou, na verdade, quando a Marvel estava afundada no poço da sua falência. Sim, a editora pediu falência mesmo.

Na década de 1990, em meio a um mercado em queda, justamente porque o público de quadrinhos não estava se renovando, a Marvel tomou uma série de decisões questionáveis. Com a saída de uma constelação de astros da editora, rumo à formação da Image Comics, a qualidade de seus gibis acabou indo para o buraco. Você pode não gostar, por exemplo, de Todd McFarlane. Mas a edição produzida por ele de Spider-Man #1 vendeu a bagatela de 1 milhão de exemplares. Isso sem falar no número 1 do X-Force de Rob Liefeld, que vendeu impressionantes 4 milhões de exemplares. Quando eles abandonaram o barco, a Marvel pareceu ficar sem saber o que fazer. Decisões editoriais equivocadas, claro, se juntaram a uma série de decisões comerciais equivocadas, fruto de uma cadeia de comando formada por pessoas que pouco – ou quase nada – entendiam de HQs.

Em 1989, o dono da gigante dos cosméticos Revlon, Ron Perelman, um verdadeiro mago de Wall Street, comprou a editora por US$ 80 milhões. Em 1993, a empresa já valia impressionantes US$ 3 bilhões. Mas a intenção de Perelman era que a Marvel se tornasse uma gigante do merchandising, atirando para todos os lados. Isso fez com que, em 1992, a editora comprasse a Fleer, um dos maiores nomes do mercado de cards colecionáveis dos EUA, em especial aqueles de esportes. Dois anos depois, uma greve dos times de beisebol – tradicionalmente, o esporte mais associado ao colecionismo na terra do tio Sam – jogou a Marvel lá embaixo. As dívidas passaram a se acumular na casa dos US$ 600 milhões. A solução foi, então, entrar com um pedido de falência. Com empréstimos não-pagos pedidos a bancos como o Chase Manhattan, o controle da empresa passou a ser disputado por tubarões do mercado financeiro. Nada bom.

Quem ajudou a dar jeito na coisa foi a dupla formada por Arad (é, ele mesmo) e Ike Perlmutter, sócios-proprietários da Toy Biz, empresa de brinquedos da qual a Marvel tinha aproximadamente 40% do controle acionário. Arad conhecia muito bem os personagens e tinha plena convicção, assim como Stan Lee (agora, mera figura decorativa no complicado painel de controle da Marvel) tinha tido durante décadas, de que os personagens estavam destinados ao cinema. Dessa forma, foi orquestrada a fusão das duas empresas no comecinho de 1996.

Um dos acordos que Arad fechou, já com a Marvel Studios, foi justamente com a 20th Century Fox pelos direitos do Quarteto Fantástico e dos X-Men. Mas como a situação financeira da Marvel não era das melhores, é claro que eles não tiveram lá muita força para negociar algo que lhes fosse bem mais vantajoso. O resultado? O primeiro filme dos alunos do Professor Xavier saiu, foi um sucesso de público e crítica... E a Marvel ganhou muito pouco dos US$ 300 milhões de bilheteria que o filme embolsou em 2000. Embora, naquele momento, a produção tenha aberto as portas para os filmes inspirados em quadrinhos, que a própria Marvel aproveitaria anos depois, o acordo praticamente vitalício nunca foi considerado lá muito vantajoso pela Casa das Ideias.

Avi Arad. Este é o cara - apesar de querer aparecer mais do que o herói que tá do lado dele, tem horas...

Avi Arad. Este é o cara – apesar de querer aparecer mais do que o herói que tá do lado dele, tem horas...

Assim que a Marvel foi comprada pela Disney, que já tinha presenciado o sucesso de filmes como o primeiro Homem de Ferro, era óbvio que o grupo do Mickey Mouse focaria seus esforços em concentrar, dentro de casa, os direitos para as adaptações de seus principais personagens. Mas os acordos com a Fox e com a Sony continuam valendo enquanto os respectivos estúdios continuarem produzindo. Foi exatamente por isso que a Fox perdeu os direitos de adaptação do Demolidor – porque, dentro do prazo determinado, não começou a produção de uma nova película do Homem Sem Medo. Agora, ele vai virar uma das séries da Marvel para o Netflix. E foi exatamente por isso que a Casa da Raposa correu para produzir uma nova versão do Quarteto Fantástico antes que a mesma coisa acontecesse e a Marvel pudesse recolocar as mãos na franquia de sua primeira família de heróis.

Essencialmente, embora o contrato Marvel x Fox seja mantido em segredo, alguns especialistas vazaram informações valiosas que fazem todo sentido. No caso dos X-Men e do Quarteto, a produção de um filme tem até sete anos depois que o último filme foi lançado para começar. E eles têm cinco anos para iniciar as gravações. Caso contrário, bingo, vai tudo parar na lista de projetos potenciais da Marvel Studios.

Mas, sejamos honestos, este é um processo que se retroalimenta: a própria Marvel, com seu próprio universo cinematográfico, renovou o público, fez as bilheterias saltarem e todo mundo querer seus próprios filmes de super-heróis. Depois de fazer, com X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido, o seu Vingadores particular, alguém realmente acredita que a Fox pensa em parar? Espelhando-se justamente no sucesso da própria Marvel? Eu mesmo respondo: não.

E, se for pra completar essa história, é bom que se registre que a Sony não vai parar, também. Lembra do Avi Arad? Então: depois de deixar a Marvel Studios em 2006, o executivo continuou como produtor dos filmes do Homem-Aranha na Sony, fazendo ainda mais dinheiro para si com a ajuda do complicado acordo que ele mesmo orquestrou lá nos anos 90. Um homem de peso ao lado do estúdio de Culver City, e alguém que a Casa das Ideias não ousaria desrespeitar – ao menos hoje em dia, por conta do importante passado em comum. O executivo ainda eventualmente aparece como produtor executivo em alguns filmes da Marvel feitos pela Fox, mas sem mais o mesmo peso por lá.

Complicado? Pois é. Isso porque a gente nem comentou que existe, digamos, um quarto elemento nesta história. Enquanto o Aranha está com a Sony e o Quarteto e os X-Men estão com a Fox, existe um último herói da Marvel que está em um outro estúdio: Namor, o Príncipe Submarino. Ancestralmente, seus direitos de filmagem estão sob o comando da Universal Pictures. O que será feito do herói e se os direitos vão, em algum momento, ser revertidos para a Marvel...

Rapaz, aí já é outra história.