Anúncio do Mickey não é um duro golpe no serviço de streaming, mas sim nas arcaicas operadoras de TV paga
Acabou. A Disney anunciou que irá encerrar o acordo de distribuição com o Netflix nos EUA e, em paralelo, anunciou a compra de parte da BAMTech, spin-off de media da Major League Baseball, que irá lançar um serviço de streaming da ESPN em 2018 e, olha só, uma plataforma 100% da Disney em 2019. O acordo, no total, foi de US$ 1,58 bilhões (ou quase R$ 5 bilhões).
Essa nova plataforma da ESPN terá os direitos para exibir 10 mil eventos esportivos por ano, incluindo esportes como baseball, hóquei, futebol americano e por aí vai. Já a outra, que sai em 2019, terá propriedades como Star Wars, Indiana Jones, os filmes e séries da Marvel, as produções da Pixar, incontáveis produções infantis e mais um monte de coisa que, você sabe, é motivo suficiente para realizar uma comic con só sua, que acontece a cada dois anos em Anaheim, Califórnia.
“Esta aquisição e o lançamento de serviços diretos ao consumidor marca uma totalmente nova estratégia de crescimento para a nossa empresa, uma que traz a vantagem da incrível oportunidade que a mudança de tecnologia provê para aproveitar a força das nossas incríveis marcas”, disse o CEO da Disney, Bob Iger, ao anunciar as novidades em um comunicado. Por enquanto, o projeto é para os EUA – mas dá para acreditar que existe, sim, ideia de expandir para outros países.
...sentiu isso? Foi o terremoto no mundo do entretenimento.
Até hoje, a Disney é um grande parceiro das operadoras de TV paga. A empresa possui (ou é coproprietária) de canais como Disney Channel, Disney XD, ABC, ABC Family, ABC News, History Channel, A&E, Lifetime, Freeform, entre outros, além de, claro, os inúmeros canais da ESPN. Os conteúdos dessas emissoras – principalmente os esportivos – são um dos grandes argumentos para se assinar um caríssimo pacote de TV e, em breve, eles estarão disponíveis por um valor que, considerando a lógica do mercado de streaming, será bem menor. E tudo pela internet.
Para você ter uma noção do impacto disso: é notório que executivos de operadoras se apeguem justamente ao fato de terem eventos esportivos ao vivo em seu CARDÁPIO, algo que o streaming, na visão deles, nunca teria. Não só já tem, como o maior jogador já marcou no calendário quando irá trocar de time nesta partida.
A notícia chega justamente no momento que é anunciado uma aceleração do chamardo “cord-cutting” nos EUA, o fenômeno das pessoas que estão cancelando os pacotes de TV paga para assinar serviços de video on demand, como Netflix, HBO Now e Amazon Prime Video. De acordo com os números do segundo trimestre, quase 1 milhão de pessoas caíram fora das velhas operadoras. “Foi a maior taxa de declínio já registrada”, afirmou Craig Moffet, da consultoria MoffetNathanson, em entrevista para The Hollywood Reporter.
Vale dizer, também, que até por isso estar na internet com um serviço robusto é questão de sobrevivência para a ESPN. Os canais estão sendo tragados pelo buraco da TV paga, tendo perdido 12 milhões de assinantes nos EUA durante os últimos seis anos, de acordo com a Sports TV Ratings. Como eventos esportivos são caros, eles precisam ter audiência não só pelo valor cobrado por assinante, mas também para justificar os altos valores cobrados dos anunciantes. Ir para o chamado over the top – a transmissão de conteúdo pela internet – passa a ser a grande saída.
No meio disso tudo, tem UM lugar que não sentiu o chão tremer, numa cidadezinha chamada Los Gatos, no Vale do Silício. É lá que fica a sede do Netflix.
Sim, eles vão perder todo o conteúdo da Disney assim que o contrato expirar, o que provavelmente irá incluir os tão celebrados filmes de Star Wars. Triste. Mas não é nada que já não se soubesse e não se comentasse nos corredores da empresa. Desde do dia 0 eles sabem que o streaming é o caminho para o futuro e que, uma hora, os donos do conteúdo iam perceber isso e cortar o intermediário – o próprio Netflix e as operadoras.
“A internet permite que qualquer um participe”, comentou Reed Hastings, CEO do Netflix, em um evento em São Paulo no começo do ano. “Quanto custa lançar um app para Android? Só precisa de uma pessoa. Agora você pode fazer uma rede de TV se tiver um app e algo para dizer... Você pode até fazer no YouTube, por ainda menos, para começar a ter uma voz. O que estamos vendo é a abertura para novas vozes, novos talentos, que nunca poderíamos ver antes”.
É por isso que a empresa de Los Gatos investe em conteúdo próprio desde 2013: para não depender da Disney ou de quem quer que seja. Talvez você não tenha percebido, mas eles também estão lançando muito conteúdo infantil – inclusive apostando em franquias do passado, como Voltron, para que pais e filhos assistam juntos. No total, US$ 6 bilhões serão gastos em conteúdo exclusivo apenas em 2017.
A internet permite que qualquer um participe
Não acaba aí, não: eles anunciaram esta semana a compra do Millarworld. Com os super-heróis e personagens criados por Mark Millar, eles estarão prontos para lançar novas séries próprias assim que perderem as da Marvel. E não duvide: novas aquisições podem acontecer, até em resposta ao movimento do Mickey.
Outro trunfo, também, é o investimento em tecnologia – afinal, estamos falando de uma empresa DE tecnologia. A plataforma deles é, querendo ou não, fácil de usar, tem um algoritmo bem avançando e, principalmente, tem uma transmissão mais fluída mesmo com uma conexão ruim. São dez anos evoluindo isso, algo que a Disney não terá do dia para a noite — e se o que acontece com a HBO todo domingo de Game of Thrones servir de exemplo...
Por fim, Netflix nunca quis ter esportes. Ter a ESPN nesse mercado pode ser o estímulo que falta para muita gente cortar o cabo e partir de vez para o VOD – e é provável que o conteúdo esportivo não resolva para toda a família. No mundo previsto por eles, há espaço para assinar múltiplas plataformas na mesma casa. Incluindo Netflix.
Nesse mercado tá tudo bem, tá tudo lindo. Enquanto isso, nas operadoras de TV por assinatura, os dinossauros estão aguardando o meteoro...