Ela: o amor nos tempos de smartphones | JUDAO.com.br

O melhor filme de Spike Jonze e, desde já, um dos melhores que você vai ver esse ano :)

Algumas constatações: Ela (Her, 2013) é um filme lindo. Ela é o melhor filme da ainda curta carreira cinematográfica de Spike Jonze (aquele diretor de videoclipes que também dirigiu o insano Quero Ser John Malkovich). Ela é também, disparado, o “segundo” melhor filme da edição 2014 do Oscar (o primeiro, em minha opinião, é o embasbacante Clube de Compras Dallas, mas deste falamos em outra ocasião). E, embora estejamos ainda nos primeiros meses do ano, posso garantir que será difícil encontrar uma produção tão bem-sucedida em sua proposta como Ela. O motivo para este alarde todo é justificável: não é qualquer filme que se propõe a falar de uma infinidade de assuntos e consegue ser tão perfeito na abordagem de todos eles.

Babação de ovo à parte, vamos lá para os detalhes. Quem conhece a filmografia de Spike Jonze sabe que o sujeito é dado a contar histórias no mínimo surreais. Mas o tema central é o mesmo em todos os seus trabalhos: a solidão, a incomunicabilidade, o desejo de ser alguém que você definitivamente não é, o desejo de ser aceito. Quero Ser John Malkovich, o ensaio metalinguístico Adaptação e a fábula infantil Onde Vivem os Monstros narram acontecimentos independentes entre si apenas para chegar a esta mesma linha.

Ela, que poderia ser definido como um misto de romance e sci-fi, não é diferente. O personagem principal, o introspectivo Theodore Twombly (Joaquin Phoenix, em mais uma grande atuação), está enfrentando um traumático processo de separação e, embora tenha um círculo ativo de amigos e seja bem respeitado em seu trabalho, alguma coisa falta em sua vida – o que logo descobrimos ser Catherine (Rooney Mara), a ex-esposa que o amava, mas que decidiu ir embora por conta do desgaste do tempo. Uma vida tranquila, essa de Theodore, mas ainda assim infeliz.

Ela

E não ajuda muito viver em uma Los Angeles em alguns anos no futuro, onde a tecnologia avançou consideravelmente e as pessoas estão cada vez mais presas a seus tablets e smartphones, que agora possuem uma característica peculiar: um sistema operacional programado para reconhecer as necessidades básicas de seu usuário e organizar sua vida, lendo seus e-mails, organizando suas agendas, escolhendo as músicas que você quer ouvir. Em uma já clássica sequência inicial, ao som da excelente Off You, dos Breeders, conhecemos a melancólica rotina de Theodore: de casa para o trabalho, do trabalho para casa, sempre acompanhado de seu mini-tablet, relacionando-se apenas consigo mesmo.

Em dado momento, Theodore adquire uma atualização deste sistema operacional dotado de inteligência artificial, capaz de interagir com o usuário de forma mais, bem, humana. Samantha, o software cujo nome foi dado por si mesmo, parece compreender Theodore como ninguém jamais o entendeu: conversa com ele durante a noite, tenta entender sua rotina e até lhe acompanha em seu jogo de videogame preferido (o melhor dos mundos pra mim :-D). Mesmo sem um rosto, Samantha parece mesmo, e poderia ser, alguém muito real, de carne e osso.

Ela

E qual não é a surpresa quando Theodore descobre-se totalmente apaixonado pelo sistema operacional? Para piorar ainda mais a situação, Samantha parece o tempo todo corresponder a este sentimento (!) – o que não é tão estranho assim, já que o processo natural de um equipamento que pensa é começar a questionar o mundo e sua própria “não existência”, assumindo para si sentidos característicos dos humanos. Como poderia um homem apaixonar-se por uma máquina? E esta máquina, é realmente capaz de sentir, ou é um sistema programado para adaptar-se e responder positivamente aos estímulos de seu “dono”? Não demora para que Theodore e Samantha assumam um relacionamento, e a esta altura, já não se sabe mais qual é o limite entre fantasia e realidade.

Ok, o enredo de Ela não é tão estranho quanto a própria filmografia de Spike Jonze – não há aqui nenhum portal que nos leve direto à mente de John Malkovich :-) – e podemos até dizer que o estilo de narrativa adotado aqui aproxima-se muito mais dos trabalhos de Charlie Kaufman, em especial o clássico Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças: temos aqui uma situação surreal, tratada com uma naturalidade tão notável que é realmente factível acreditar que aquilo tudo pode acontecer.

E é impressionante como a trama de Ela, escrita pelo próprio Spike Jonze, é capaz de despertar muitas discussões. Até que ponto a tecnologia de nosso dia-a-dia, principalmente os celulares e as redes sociais, que deveriam aproximar as pessoas, pode nos influenciar a ponto de causar o efeito inverso? Por que o mundo virtual, aquela realidade de plástico que a gente cria quando se transforma em um perfil de Facebook, é tão mais atraente que o mundo real? Por que temos propensão a nos afeiçoar àquilo que de fato não existe? Quais são os limites da ciência? O que pode acontecer quando uma máquina desenvolve consciência?

Muito ajuda a ambientação absolutamente crível – o futuro próximo retratado em Ela não é apocalíptico como um Blade Runner da vida e é bastante factível, considerando o estágio de evolução tecnológica em que estamos hoje -, a fantástica trilha sonora incidental (cortesia da banda canadense Arcade Fire) e principalmente o formidável trabalho dos atores: além da atuação sob medida de Joaquin Phoenix, é preciso destacar também o excelente trabalho de Scarlett Johansson como Samantha. Embora seja apenas um trabalho de voz, é impressionante como é possível sentir a presença da personagem, o que faz o espectador entender claramente o sentimento que o software desperta em Theodore – a campanha que os produtores fizeram por uma indicação de Melhor Atriz para Scarlett Johansson é justificável SIM, mesmo que não vejamos seu rosto em momento algum. E Amy Adams, como uma amiga de Theodore que foi abandonada pelo namorado e passa a viver um “relacionamento” de altos e baixos com seu gadget (!), comprova que é uma das grandes atrizes em atividade (você ainda não assistiu Trapaça? Aproveita e vá fazer uma sessão dupla AGORA!).

Ela

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Não é qualquer filme que se propõe a falar de uma infinidade de assuntos e consegue ser tão perfeito na abordagem de todos eles

[/one-half][one-half last=”true”]Mas o maior mérito de Ela, aquele que o torna um dos filmes mais bonitos dos últimos tempos e obrigatório para qualquer fã de cinema, é a identificação imediata do espectador. Não importa o surrealismo da trama, não importa o quão absurdo este plot pode parecer: qualquer um que já tenha se apaixonado, qualquer um que já tenha tomado um corno no meio da testa e qualquer um que já tenha sofrido um belo de um pé na buzanfa poderá reconhecer a si mesmo em muitos momentos de Ela. Afinal, é apenas uma história de amor. Uma bela e muito triste história sobre como o amor pode sobreviver em uma época em que estamos totalmente dependentes da tecnologia.

Por via das dúvidas, já joguei meu celular fora. :-)[/one-half]