Em novo disco, Mastodon exorciza suas tragédias pessoais | JUDAO.com.br

A catarse musical de um dos mais brilhantes nomes do atual rock pesado americano transforma o álbum conceitual Emperor of Sand em uma obra madura, intensa e poderosa

“Don’t waste your time / Don’t let it slip away from you / Don’t waste your time / If it’s the last thing that you do”, diz a letra de Precious Stones, uma das canções de Emperor of Sand, o recém-lançado sétimo álbum de estúdio dos americanos do Mastodon. Ela pode servir como um resumo conceitual da obra, aliás, porque trata-se de um álbum que, do início ao fim, conta uma mesma história – aqui, no caso, sobre um sultão em forma de esqueleto (o mesmo que ilustra a imagem da capa) que sentencia um homem à morte no deserto. Ele está perdido, sozinho naquele ambiente inóspito, debaixo do sol escaldante, sem comida e sem esperança.

A ambientação de aridez e desolação veio de Lawrence da Arábia (1962), filme que o baterista/vocalista da banda, Brann Dailor, assistiu repetidas vezes na época. “A fotografia é linda e todo aquele conceito de ‘o deserto é um oceano’ casou imediatamente com as letras”, explicou ele, em entrevista pra Rolling Stone. “Este foi praticamente o ponto de partida da história”.

Mas esta não é uma banda como qualquer outra. Este é o Mastodon, um dos mais representativos e criativos nomes de uma cena recente de bandas que fazem som pesado com inteligência e atitude nos EUA. E se no lindíssimo Crack the Skye (2009) eles usaram a história de uma pessoa paraplégica com o poder de lançar sua projeção astral para fora do corpo em uma estranha busca pelo corpo do misterioso mago russo Rasputin, para exorcizar o trauma do suicídio de Skye, a irmã de Dailor, aqui a coisa também é bem menos simples e mais obscura do que aparece.

O deserto é uma espécie de alegoria para falar sobre o inferno real da quimioterapia. E, sim, Emperor of Sand é um álbum para falar de maneira metafórica sobre o câncer.

A esposa do baixista Troy Sanders foi diagnosticada com câncer de mama, enquanto a mãe de Dailor enfrentava um tratamento cansativo para combater a doença que já vivia ao seu redor ao longo de quatro décadas... e a mãe do guitarrista Bill Kelliher morreu por conta de um tumor cerebral.

“Foi um período terrível para todos nós. Somos uma família e todos conhecíamos e sentiremos muita falta da mãe do Bill”, afirma Dailor. “Ouvir o disco me faz pensar na minha mãe e em todas as coisas que testemunhei ao lado dela”, revela o próprio Bill. “São coisas muito emocionais e verdadeiras para nós e acho que as pessoas vão se conectar com elas”.

Este foi o motivo, aliás, que levou os caras a abrirem o jogo sobre o que estava por trás da história. “Teria sido mais fácil deixar apenas a coisa do sultão, do deserto, e não falar nada sobre o que passamos”, explica o baterista. “Mas as pessoas que nos ouvem são muito conectadas emocionalmente com nossas músicas, causando aquele impacto de ‘eu sabia que vocês estavam falando comigo, eu passei pela mesma coisa’. Eu acho que as pessoas acabaram nos procuram como um remédio para alguma coisa. A música, definitivamente, tem esta característica curadora”.

Para quem ouve e, bom, pra banda também, né. Emperor of Sand é um álbum sombrio, que fala sobre o tempo, sobre morte, sobre devastação. Mas ao mesmo tempo em que o resultado soa cheio de angústia e, por que não dizer, um tanto vulnerável, estamos diante de uma obra poderosa, ambiciosa, intensa, emocionante. E, sem dúvida alguma, o disco mais diverso, versátil e desafiador da trajetória do quarteto até agora. Se é que dá pra comparar, da mesma forma que o Magma que os franceses do Gojira soltaram ano passado, este Emperor of Sand é riquíssimo, repleto de camadas sutis e complexas que os colocam fora da caixinha óbvia de “esta é uma banda de heavy metal”.

O disco é pesado, furioso o suficiente pra bater cabeça? É. Mas também flerta com o progressivo, com o lisérgico, com o melódico e, que rufem os tambores, também com o pop. Basta ouvir o primeiro single, Show Yourself, com um refrão que te agarra e não desgruda mais, faixa que pode tranquilamente tocar no rádio sem parar. Dá vontade de sair dançando e, em certo momento, você se pega lembrando imediatamente do Queens of The Stone Age.

Aliás, as primeiras quatro canções do disco se comunicam muito mais com os dois álbuns anteriores, The Hunter (2011) e Once More ‘Round the Sun (2004), do que com o começo de carreira mais sludge, sujo e pesado, dos caras, o que pode causar reclamações dos fãs mais antigos, que os acusaram recorrentemente de terem se “vendido” (afe). Sultan’s Curse, que abre os trabalhos, é um verdadeiro caminhão de ótimos riffs mas, ainda assim, é daquele tipo de rock bastante acessível. O mesmo vale para a metralhadora sonora da bateria que acompanha Precious Stones, mas que em nenhum momento torna a faixa árida para um ouvinte eventual. Mas o destaque deste bloco inicial é, sem dúvida, a chapadíssima Steambreather.

Cabe um parênteses aqui, inclusive, para falar da performance vocal de Dailor. Essencialmente, os vocais do Mastodon se dividem entre Sanders e o outro guitarrista, Brent Hinds. O baterista se arriscava eventualmente em backing vocals aqui, harmonias acolá. Mas em Emperor of Sand, ele se solta pra valer e encontra um excelente caminho para complementar o trampo dos colegas. O jeito que ele canta em Steambreather é de uma entrega impressionante, tão cheio de alma, de emoção, que casa como uma luva na pegada climática da canção, que tem groove o bastante para ser presença garantida no setlist ao vivo dos caras pelos próximos anos.

A partir de Roots Remain, no entanto, este Mastodon mostra a que veio em termos mais porradeiros, digamos assim. A faixa é uma espécie de porta de abertura para as referências da era Blood Mountain (2006), stoner metal de responsa, com guitarras gigantescas que te fazem cavalgar até uma espécie de interlúdio meio cósmico, espacial, com direito a ares de David Bowie e tudo mais. Impossível o sujeito dizer que não dá pra sair batendo cabeça com Clandestiny – por mais que role um sintetizador meio Frank Zappa no meio do caminho, sem perder o sentido em nenhum momento – e com o glorioso cruzamento de guitarras cuspindo alta velocidade em Ancient Kingdom. Tudo embalado pela voz ríspida e agressiva de Sanders.

Estas músicas mostram que o Mastodon ainda é metal pra caralho. Mas um metal beeeeeem longe de ser óbvio. E não APENAS metal. Mas TAMBÉM metal.

Um metal que ainda consegue meter uma deliciosa lisergia na progressiva Andromeda (Te lembra um tantinho de Pink Floyd? Eu sei, pra mim também) e ainda traz a hoje já protocolar participação especial de Scott Kelly, do Neurosis, aplicando a vibe mais extrema em Scorpion Breath.

O mais legal é que ambas talvez sejam os dois momentos mais cacetada do disco, para então emendar na enorme Jaguar God, um claríssimo manifesto multidimensional do que o Mastodon quer ser daqui pra frente: exatamente o que bem entender. E se isso representar uma mistura de uma porrada de coisas, então tudo bem. Começa como uma dolorida balada acústica meio blueseira, desemboca numa piração de barulhinhos com LSD, entorna numa violência pra sair quebrando tudo e finaliza numa gargalhada macabra ao som de uma guitarra triste e sofrida, narrando o destino final do condenado.

Dá pra dizer que, assim como personagem principal de sua história, o Mastodon encarou um cataclismo de proporções catastróficas para emergir renovado e renascido do outro lado. Com um olhar ainda mais afiado para colocar a vida sob outra perspectiva. E sabendo que ela precisa, claro, ser vivida cada vez mais intensamente. Um dia depois do outro.