Em série solo, America mostra que é o outro lado de Kamala Khan | JUDAO.com.br

Outrora conhecida como Miss America, a heroína estrela, a exemplo da nova Miss Marvel, um gibi que não apenas os EUA mas o mundo precisa ler

“Kamala Khan é o Peter Parker do século 21”, disse certa vez o editor-chefe da Marvel Comics, Axel Alonso, a respeito da nova Miss Marvel. O cara está certíssimo em toda a sua empolgação: tímida e inteligente, tratada como uma espécie de pária social por seus iguais, forçada a esconder seus poderes e sua identidade secreta da família, ela é o que Parker foi e representou para a molecada dos anos 60. Se eu me via no jovem Peter Parker, hoje minha filha de 13 anos, com um nome que carrega forte identidade árabe, ADENTRA ao universo dos gibis se enxergando na Kamala.

Pode crer que a Casa das Ideias não ficou parada e agora temos um Steve Rogers do século 21: America Chavez, surgida em 2011 e a segunda personagem a envergar o título de Miss America (a primeira, Madeline Joyce, foi criada em 1943 para tentar atrair, doce ironia, uma geração de “jovens leitoras”). Agora definitivamente sem o “Miss”, conhecida apenas por seu próprio nome, bastante sintomático, eis que America se torna a estrela de seu próprio título mensal, cujo primeiro número acaba de ser lançado.

Em comum, America e a Miss Marvel têm o apelo jovem, a leveza das tramas, o bom humor, a linguagem e as muitas referências e sacadas pop. É uma levada moderna e dinâmica que, ao mesmo tempo, retoma aqueles momentos de diversão pura e simples da Marvel das antigas, quando acompanhar uma HQ dependia apenas e tão somente do gibi que se tinha em mãos e não de outras 43 edições de cronologia interligada.

A arte ágil, limpa, colorida e cheia de vida, quase desenho animado, de Joe Quinones, também ajuda um bocado. Dá gosto de acompanhar, em especial no traço que ele dá à personagem, que é linda, cheia de atitude e bastante atlética, sem uma sexualização desnecessária. Ela tem curvas, mas não um monte de decotes e bundinhas empinadas desnecessariamente.

Aliás, a grande diferença aqui é que, ao contrário de uma Kamala ainda aprendendo a encontrar seu caminho, America é desde já um mulherão da porra. Heroína cheia de fãs e que já sabe muito bem usar os seus poderes — força, velocidade e resistência super-humanas, capacidade de vôo e a habilidade de abrir portais no tecido da realidade, fazendo com que ela seja considerada uma das mais poderosas heroínas do planeta. Apesar de jovem, America já fez parte da Brigada Juvenil, dos Jovens Vingadores, do A-Force e agora é nada menos do que a líder dos Ultimates, à frente até mesmo da Capitã Marvel, sintam só a responsa. Estamos falando de uma espécie de popstar do mundo dos heróis. Uma Beyoncé, digamos assim.

Orgulhosa e cheia de si, ela veste as estrelas e as listras e acaba sendo um símbolo para grande parte de sua nação, exatamente como foi outrora Steve Rogers. Mas, assim como ele, America vive em nossa realidade egressa de um lugar distante. Só que não no passado, mas no tempo-espaço: criada pelas mães na dimensão alternativa fora do tempo conhecida como Paralelo Utópico, a garota abandonou sua terra natal depois que um casal se sacrificou para salvá-la da divindade cósmica conhecida como Demiurgo, de quem America acaba absorvendo parte dos poderes. Navegando por uma série de dimensões, eis que ela acaba caindo na nossa, o universo outrora conhecido como 616, e meio que se encontra em uma segunda casa para usar suas habilidades com responsabilidade.

Se Kamala Khan, uma heroína muçulmana, é devidamente roteirizada por G. Willow Wilson, uma norte-americana que se converteu ao islamismo, era de se esperar que a Marvel não marcasse bobeira com America Chavez — que é escrita por Gabby Rivera, autora do livro de temática LGBT Juliet Takes a Breath, focado no público jovem, em sua estreia nas HQs. Gabby é, assim como a própria America, gay e latina. Tudo soa natural, orgânico, como bem tem que ser porque é assim na vida, né (aceita logo e para de encher a porra do saco).

Bem-resolvida com relação à sua sexualidade, sua vida pessoal (quando sua namorada, Lisa, decide não acompanhá-la em seus planos, America não se faz de rogada e cai na estrada assim mesmo) e sua carreira como heroína, a jovem então resolve cuidar de uma coisa para a qual nunca tinha tido tempo: estudar.

E aí passa a cumprir um novo papel, como aluna da Sotomayor University, cujo nome não é por acaso uma homenagem à Sonia Sotomayor, juíza da Suprema Corte dos EUA que tem ascendência porto-riquenha. Apesar de famosa, America Chavez é apenas uma estudante aqui, como seus professores fazem questão de deixar claro, por mais que a heroína tenha claramente um problema com figuras de autoridade.

Vemos então a America se tornando ela mesma uma recém-chegada, entre alunos com e sem poderes. Novamente em busca de aceitação. Retornando à estaca zero.

Se a América, com acento, depois de anos de avanços no campo social, vai ter que ser ainda mais forte diante do muro que se posiciona à sua frente na Casa Branca, aprendendo a recomeçar, o mesmo vale para esta America, sem acento, que vai provar o quanto a sua força vai mais longe do que apenas um conjunto de superpoderes.

Sacou qualé? <3 “The change is here. It’s right now. It’s going to wreck everything. And you will be so much better for it”, diz ela, em pensamento, depois de se despedir da melhor amiga, Kate Bishop, a igualmente interessante e cativante Gaviã Arqueira.

Junte a isso o final cheio de potencial — e, se você tá ligado no que tá acontecendo no mundo ao seu redor, BEEEEM atual — que entrega a possibilidade de termos tramas repletas de viagens malucas no tempo, BINGO!, creio que estamos diante daquele que promete ser um dos gibis mais bacanas da nova safra da editora.

A cultura pop precisa da delicadeza de Kamala Khan. E agora também precisa, mais do que nunca, da força de America Chavez.