Uma das HQs mais marcantes da Marvel, que resume bem toda uma importante fase da história dos EUA
Se a DC adora uma “Crise”, são as Guerras que fazem a cabeça da Marvel. Isso desde Guerras Secretas, o primeiro grande crossover da editora nos anos 80 — ok, teve Desafio dos Campeões antes, mas foi a batalha escrita por Jim Shooter e desenhada por Mike Zack e Bob Layton que ajudou a estabelecer o perfil clássico de um grande crossover de verão da Casa das Ideias.
E foi em 2006, depois de uma Guerra Secreta (isso mesmo, no singular), que a editora teve a ideia que parece ser a mais óbvia: juntar o conceito de treta com o mais importante conflito interno dos EUA, que realmente dividiu o pais em dois, dando origem aos Estados Confederados da América. Todo americano, seja na escola ou na família, aprende sobre a Guerra Civil, então é uma referência que sempre esteve lá. Um nome forte, que rendeu uma das HQs mais celebradas dos últimos dez anos — e que inspira Capitão América: Guerra Civil, que estréia esta semana no Brasil.
Primeiro, é bom que se diga que a Guerra Civil original foi sobre liberdade. No idealismo, foi sobre quando homens nobres do Norte lutaram pela liberdade dos homens negros de todo o pais contra os do Sul, que tinham um pensamento mais ~atrasado, digamos assim. Na verdade, porém, aquela luta foi sobre diferenças no modo de como o país deveria seguir em frente.
Os latifundiários do Sul viam na escravidão uma peça importante da forma como eles geravam riqueza. Afinal, escravos eram uma força de trabalho barata, tratada como propriedade e que mantinha todo um esquema de agronegócio. Já o Norte, mais industrializado, tinha uma outra visão: o que importava era pagar um salário baixo para os trabalhadores e, em seguida, vender a eles produtos industrializados. Com o fim da escravidão, toda uma enorme população do Sul poderia finalmente se tornar assalariada, comprar produtos e, claro, encher os bolsos dos industriais do Norte.
Sim, há muito mais coisas além do idealismo.
Na HQ, escrita por Mark Millar e desenhada por Steven McNiven, foi mais ou menos por aí. Não na parte da escravidão, mas sobre idealismo, liberdade e massa de manobra.
Após um desastre envolvendo os Novos Guerreiros em Stamford, que destruiu diversas quadras da cidade ao vivo na TV e matou mais de 600 pessoas (incluindo aí uma escola cheia de crianças), ganhou força no Congresso a Lei de Registro de Super-Humanos. O projeto, aprovado em tempo recorde, passou a exigir que todos os superpoderosos da Marvel fossem registrados e revelassem a sua identidade secreta para a SHIELD, passando assim a serem responsabilizados por seus atos e, depois, recebendo um treinamento e sendo reagrupados em equipes para proteger cada um dos 50 estados americanos — trabalho pelo qual receberiam um SALÁRIO.
Tony Stark, o Homem de Ferro, era originalmente contra a lei – até a tragédia de Stamford. Depois disso, o cara percebeu que o registro não era apenas uma dura necessidade, como também uma forma de conter a opinião pública contra os heróis. Por motivos parecidos, Reed Richards, Hank Pym, Miss Marvel, Mulher-Hulk e outros heróis seguiram o mesmo caminho. Outro que apoiou inicialmente a decisão foi Peter Parker. Na época, o Homem-Aranha morava na cobertura da Torre Stark e tinha um relacionamento bem próximo ao bilionário, inclusive recebendo um novo e avançado uniforme.
Só que teve muita gente que não gostou dessa ideia de registro. Ainda antes da lei ser aprovada, Maria Hill, a diretora da SHIELD, resolveu se preparar para exercer o futuro novo poder. A primeira ação foi convocar Steve Rogers, o Capitão América, para convencê-lo a se voltar contra quem estivesse ilegal. E é ai que a merda efetivamente começa.
Steve é completamente contra a lei e a determinação da Maria Hill. Nenhum país deve estar acima das vontades individuais das pessoas, muito menos obrigar alguém a fazer algo que não quer – um direito de liberdade básico, no qual os EUA foram fundados e que o próprio Capitão foi à Europa defender durante a Segunda Guerra Mundial. Não é só isso: as identidades não seriam públicas, mas quem garante que a SHIELD agiria de forma correta com aquela informação? Afinal, a agência já tinha cometido erros no passado. Para Steve, aquela história de fichar cada herói e colocar um número neles relembrava o começo de algo doloroso do passado: o Holocausto.
Como a Guerra Civil original, a verdadeira disputa passou a ser sobre quem controla uma massa importante da população. Só que ao invés de trabalhadores, são pessoas que podem mudar o equilíbrio de forças do país ou até no mundo. Imagina uma eleição presidencial sabendo que o governo tem uma força de super-heróis em cada um dos 50 estados do país? Ou uma guerra internacional no qual um dos países tem os Vingadores como força militar? Pra resumir, nas palavras do próprio Capitão: quem vai decidir quem são os super-VILÕES?
Assim, Steve se revolta, foge do aeroporta-aviões e se torna ele mesmo um foragido da justiça – por mais que a identidade dele fosse pública, ele não se registra, contrariando a nova lei. Assim, no UNDERGROUND, o Capitão América forma uma nova versão dos Vingadores apenas com heróis contrários ao governo, como Luke Cage, Sue Richards e o Falcão.
Toda essa história não possui apenas o contexto do passado, mas havia também o peso do mundo pós 11/09 nas costas dos EUA. O Governo Bush ampliou o controle das pessoas, inclusive dos próprios americanos, cerceando liberdades individuais em prol de um bem maior, a “luta contra o terror”. Com a mesma justificativa, invadiu Iraque e o Afeganistão, além de transformar umA base em Cuba num campo de tortura e prisão.
Foram também decisões que, no mundo real, dividiram as pessoas.
Tudo isso posto, a história avançou de forma ainda mais interessante. Lembra do Homem-Aranha? Ele é manipulado por Stark, que realmente acredita que o Escalador de Paredes poderia ser alguém pra influenciar outros heróis, e força o cara a revelar a sua identidade de forma pública – mesmo que, pela lei, isso não seja necessário. A atitude tem efeito inverso: Parker passa a ser perseguido por seus principais inimigos, assim como Mary Jane e a Tia May, revelando que essa história de identidade pública não é uma coisa boa. Quase morto, o Aranha é levado pelo Justiceiro aos Vingadores Secretos e passa a integrar as fileiras contra o Registro – e a se tornar um herói ilegal, afinal ele NÃO chega a fazer a parte burocrática do registro.
(Homem-Aranha, Homem-Aranha, faz que bate, só apanha... :P)
O ápice do conflito surge quando o lado do Capitão América descobre que Stark e Richards estavam desenvolvendo uma prisão na Zona Negativa, na qual todos os super-humanos ilegais seriam presos de forma definitiva, já que haviam se tornado um risco à segurança pública. Heróis contra o Registro como Punho de Ferro (na época, se passando pelo Demolidor), Manto e Adaga acabam sendo mandados pra tal prisão, que em pouco tempo se transforma num enorme barril de pólvora.
Acontece então a batalha final, levada pelo Manto bem pro centro de Nova York, com muito derramamento de sangue. No final, o lado contra o Registro é “vitorioso” — mas é nesse mesmo momento que Steve Rogers para, olha ao redor e pensa: há realmente um vencedor? A luta pela liberdade vale tudo aquilo? É certo mais gente pagar com a vida porque ele se recusa a aceitar uma lei criada e aprovada? Qual é o limite da luta pelos nossos ideais? É certo um inocente morrer por eles?
Rogers então se entrega e, enfim, o Registro vence. Parte dos super-humanos que não se registram vão para o Canadá, enquanto outros formam uma versão dos Novos Vingadores e recebem uma espécie de anistia pelos crimes que cometeram durante a guerra, por mais que ainda continuem ilegais. O Capitão América é o único efetivamente preso.
No EPÍLOGO da Guerra Civil, em Captain America #25, Steve Rogers é morto por um tiro à queima-roupa por Sharon Carter, que havia passado por uma lavagem cerebral. A alegoria disso é extremamente profunda: o sonho da liberdade morreu, morto por uma América manipulada — justamente aquela que sempre mais a amou.
Ah, a ironia.