Depois de ameaçar ataques no estilo 11 de Setembro, a Sony resolveu cancelar a estreia do filme. E se mais gente ameaçar, quantos filmes, séries, livros, quadrinhos e jogos não poderão ser cancelados só porque uma determinada parte da população do universo não achou a ideia legal?
“Não posso admitir que a imagem da cidade seja denegrida desta forma”. Foi com esta declaração, contundente, que o secretário do turismo da cidade do Rio de Janeiro em 2002, José Eduardo Guinle, se manifestou contra a Fox e ainda acenou com uma tentativa de processo por conta do episódio da visita d’Os Simpsons ao Brasil – com órfãos sendo atacados por hordas de macacos, uma jiboia engolindo o Bart, Homer sendo sequestrado por um motorista de táxi e ladrões zombando sobre o nosso dinheiro ser “muito gay” (as notas coloridas, diferentes das notas verdes do dólar americano).
Não era a primeira vez que a produção da série animada sacaneava um país. Já fizeram largamente isso com Japão, Irlanda, Austrália. A Inglaterra, então, é alvo recorrente. Mas foi uma das únicas ocasiões em que a repercussão foi tamanha que o produtor James Brooks sentiu a pressão e veio à público se desculpar “pelos excessos” do episódio. Ali, estava aberto um precedente perigoso. Que inflamaria novamente os comentaristas profissionais de redes sociais em pelo menos duas ocasiões, quando Stallone falou dos macacos que levaria de brinde das filmagens de Os Mercenários e quando Robin Williams sacaneou a comitiva olímpica brasileira que garantiu a disputa em 2016 no Rio com “strippers e drogas”.
Todo mundo se indignou, acendeu tochas e bradou em alto e bom som: “não, ninguém pode tripudiar assim do povo brasileiro”. Era o espírito nacionalista falando mais alto, não é mesmo? E, engraçado, estas mesmas pessoas agora parecem indignadas com a reação norte-coreana ao filme A Entrevista. Ataques cibernéticos que, rapidamente, se transformaram em uma ameaça terrorista. Do tipo que fez a Sony cancelar a estreia do filme.
“Fazer e lançar um filme que insinua um ataque ao nosso maior líder é um ato que não será tolerado”. O tom não lhes parece familiar? Pois é. Foi uma das primeiras declarações do governo de Pyongyang a respeito do filme de Seth Rogen e James Franco. Ninguém sequer podia imaginar que se transformaria em um conflito diplomático e, pouco depois, em um ato terrorista? Mas aconteceu. E, daí, surge um outro precedente, MUITO mais perigoso do que o de um pedido de desculpas formal.
O primeiro ponto é de que os terroristas venceram. Aquela coisa de não viver sob o medo, não negociar com terroristas, acabou. Mesmo que a decisão de não estrear o filme tenha sido escudada em outra decisão, dos cinemas, de não exibirem o filme, e a razão final tenha sido diminuir os prejuízos, a Sony atendeu às reivindicações dos terroristas (ainda que seja uma questão de tempo para que o filme seja lançado, oficialmente e/ou não).
Isso nos leva a um segundo ponto: na teoria, se Os Simpsons resolverem visitar o Brasil uma terceira vez e alguém por aqui não gostar do que for mostrado ou, sei lá, se Stallone falar mais alguma coisa sobre o País, existe uma enorme chance de que os estúdios não só peçam desculpas ou ignorem sumariamente, mas cancelem a exibição.
Nas redes sociais, Hollywood bate cabeça. A comunidade criativa fica triste com o “fim da liberdade de expressão”; outros cogitam a possibilidade de, de fato, alguma coisa acontecer caso o filme fosse lançado (não na escala prometida, claro); tem a galera que diz que não se deve viver com medo e vai exibir Team America no lugar (e diz, por exemplo, que se os EUA lidassem com o nível de terrorismo que Israel lida, já teriam se entregado há muito tempo. “Não ir ao cinema nos EUA por medo é como não ir a um café ou andar de ônibus em Israel”, disseram). E tem aquele pessoal que sugere que o filme seja liberado de graça, que todas as TVs se unam pra exibir o filme simultaneamente...
Barack Obama até chegou a vir a público e recomendar que as pessoas continuem indo ao cinema normalmente. A questão é o que elas poderão encontrar por lá, a partir de agora.
“Liberdade de expressão” em Hollywood é só mesmo uma liberdade de expressão. Como alguns apontaram, “a cabeça de um ditador derretendo só faz com que a classificação seja R. Um pinto duro colocaria NC-17 e o medo no universo”. Mas quantos projetos não serão cancelados quando ainda estiverem no roteiro? Quantos roteiros não serão escritos simplesmente porque “essa ideia não vai ser aprovada”?
Aliás, isso meio que aconteceu: com as ameaças, a Fox informou a New Regency que não mais distribuiria Pyongyang, filme baseado na graphic novel de Guy Delisle, sobre um ocidental que passa um ano na Coréia do Norte; assim sendo, a New Regency cancelou a produção do filme.
Entre os e-mails vazados no meio dessa brincadeira, há alguns entre Michael Lynton, CEO da Sony Pictures Entertainment, e o Governo dos EUA, justamente sobre o “peso” de A Entrevista, que foi liberado quase que em sua totalidade (o negócio da cabeça do cara derretendo foi bastante criticado em exibições teste, mas foi mantido, ainda que mais leve). E agora?
Engraçado perceber que, refletindo a atual situação global, a postura de Kim Jong-un é nitidamente mais extremada e extremista que a de seu pai, Kim Jong-il – e mesmo que a de Saddam Hussein, o finado líder iraquiano. Hussein, em South Park: Maior, Melhor e Sem Cortes, foi retratado como um sujeito promíscuo que tinha um caso com ninguém menos do que Satã (sem esquecer que tudo é culpa do Canadá). E Kim Jong-il, em Team America – Detonando o Mundo (dos mesmos criadores de South Park, aliás), é tratado como um homenzinho irritadiço, mimado, que fala palavrões, canta musiquinhas de gosto questionável sobre a carreira de Alec Baldwin e que, na verdade, era uma barata alienígena.
Tudo que aconteceu, no entanto, foram algumas declarações formais de repúdio. Mas ninguém, em nenhum momento, ameaçou explodir uma sala de cinema na qual estivesse sendo exibido o filme.
A reação faz lembrar o lendário caso do livro Versos Satânicos, do escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie, editado em 1989. Na trama, dois indianos muçulmanos sobrevivem a um atentado terrorista. Pouco depois, um deles começa a desenvolver atributos físicos que lembram um demônio: chifres, rabo, cascos nos pés. O outro ganha uma angelical aura de luz ao seu redor.
Bingo: o livro foi considerado ofensivo ao islamismo. Grupos radicais queimaram cópias da obra em praça pública (Fedric Whertam ficaria orgulhoso). E o governo do Irã, na época controlado pelo aiatolá Khomeini, declarou uma sentença de morte para Rushdie. Líderes religiosos iranianos colocaram uma recompensa de pelo menos 6 milhões de dólares por sua cabeça. Ou seja: pisou no Irã, bingo, Rushdie iria do aeroporto direto pro cemitério. Simples assim.
Se esta situação servir para provar que Kim Jong-un está, de alguma forma, próximo da atuação sangrenta de Khomeini, estamos diante de um cenário desolador.
Vocês acham que estamos livres disso? Não, não estamos. Acham que a comparação é exagerada? Não, não é. Estamos, isso sim, a apenas um ditador maluco de distância. E se não temos ditadores, temos malucos o suficiente rondando o nosso Congresso Nacional. Todos com um discurso extremista que faria o orgulho de Kim Jong-un (Bolsonaro mandou um beijo, Feliciano mandou um abraço).
E poderiam nos tirar algumas horas de diversão.