Quando a gente fala em “literatura brasileira”, você só consegue pensar em Machado de Assis e Guimarães Rosa? Um escaravelho e um vaga-lume vão te provar o contrário ;)
Filho do ator Francisco Milani (o saudoso Seu Saraiva, aquele que tinha tolerância zero), Carlo Milani, 42 anos, é um diretor veterano da Rede Globo – já trabalhou em novelas como América e Bang Bang, além de duas temporadas de Malhação e as as minisséries Amazônia – De Galvez a Chico Mendes e Aquarela do Brasil. Também passou pelo teatro, onde dirigiu de Shakespeare (A Comédia dos Erros) a Chico Anysio (Estranhos Casais). Mas ainda faltava uma coisa em seu currículo: o cinema. Ele vinha tentando encontrar o projeto certo para fazer esta estreia e a resposta veio meio que por acaso: nas mãos de sua filha.
“Cheguei em casa e aí vi minha filha lendo O Escaravelho do Diabo”, conta Milani em entrevista ao jornal O Globo. “Eu li o livro quando tinha uns 13 anos, na escola. Eu estudava no Marista São José, e não era um moleque muito ligado em leitura. Mas, com O Escaravelho, eu li tudo de uma vez. Aí resolvi preparar um projeto para a adaptação”.
O agora cineasta afirma que, se tem uma única expectativa com o filme, é deixar os cinco herdeiros da escritora Lúcia Machado de Almeida, autora da obra original, felizes. “O livro foi muito importante para a minha formação”, afirma. Segundo ele, a “garotada” dos dias de hoje adora o suspense do cinema americano. “Acho que podemos acertar nesse caminho”.
O Escaravelho do Diabo é um verdadeiro clássico da literatura infantojuvenil do Brasil, que acaba de chegar à sua 27a edição – e dá pra dizer que a sua adaptação para os cinemas significa, para toda uma geração de leitores do nosso País, o equivalente a ver um Jogos Vorazes chegando às telonas (guardadas as devidas proporções de produtos licenciados, claro).
Lúcia, mineira formada em jornalismo que já tinha abocanhado diversos prêmios literários em sua trajetória como escritora – ela escreveu também Xisto no Espaço e Xisto e o Pássaro Cósmico, entre outros – lançou a obra em 1972, como parte da Série Vaga-Lume, da Editora Ática.
Embora a Ática não revele o número de exemplares vendidos de cada livro, já se sabe que, ao todo, a coleção de mais de 100 títulos vendeu impressionantes 7,5 milhões de unidades – e O Escaravelho do Diabo foi o 2o mais vendido, vindo atrás apenas de A Ilha Perdida, de Maria José Dupré. Recentemente, O Escaravelho e mais outros 9 livros da antiga coleção foram relançados e receberam tratamento editorial renovado, com novas capas e ilustrações.
Para a professora Regina Zilberman, especialista em literatura infantojuvenil, embora a série tenha tido como foco sempre a sala de aula, teve potencial para cativar leitores além das escolas. “A série teve duas grandes sacadas editoriais. A primeira foi perceber que não era suficiente oferecer os clássicos para formar público leitor, então reabilitou autores dos anos 1940 e 50, como Maria José Dupré”, explica ela, ao Zero Hora. “Outra sacada foi passar a investir em novos nomes, gente que nada tinha a ver com o livro infantil, mas que ali encontrou seu chão, como Marcos Rey (responsável pela trilogia O Mistério do Cinco Estrelas, O Rapto do Garoto de Ouro e Um Cadáver Ouve Rádio, que também deve chegar ao cinema em breve)”.
Com roteiro de Melanie Dimantas e Ronaldo Santos, O Escaravelho do Diabo traz a assinatura da produtora Sara Silveira, da Dezenove Som e Imagens, conhecida no Brasil por dar chance a jovens diretores em seus primeiros filmes e também por trabalhos mais autorais — como Durval Discos, de Anna Muylaert, e Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzsky. “O orçamento de produção e distribuição é de R$ 5,8 milhões, é o filme mais caro que eu já fiz”, revela ela, à O Globo. “Então é um desafio novo lidar com um projeto desse tamanho e com a expectativa de público. O que a gente quer provar, unindo as forças da Dezenove com a Globo Filmes, é que é possível fazer um cinema de entretenimento com reflexão no Brasil”.
Rodado no primeiro semestre de 2015 nas cidades de Amparo, Monte Alegre do Sul, Holambra, Jaguariúna e Campinas, no interior paulista, o longa se passa na fictícia cidade interiorana de Vale das Flores. A tranquilidade do lugar acaba sendo abalada quando começa uma série de assassinatos de pessoas ruivas. Além das cores dos cabelos, sempre legítimos, o que une as mortes como elemento em comum é o fato de que todos receberam uma caixinha com um escaravelho preto.
Quem investiga a série de crimes é o Inspetor Pimentel, vivido por Marcos Caruso (que, para os noveleiros de plantão, pode ser visto atualmente em A Regra do Jogo). “A gente está contando a história de um ponto de vista adulto. É um drama sob a ótica madura, mas que pretende atingir um público jovem”, explica o ator. “Eu acho que essa garotada de hoje é tão bem informada, assiste a tantas coisas, que não dá para fazer um filme bobinho e infantil”.
Caruso não acha que uma trama sobre um serial killer vá assustar os mais jovens, foco primordial não apenas do livro mas também do filme. “A criança tem que saber de tudo. Eu criei o meu filho assim. O filme é pesado mesmo, porque é uma série de assassinatos. Se o livro é pesado e agradou os mais jovens, o filme também tem que ser”, diz Caruso para a Folha de S.Paulo.
No entanto, pensando justamente neste público, uma mudança fundamental foi feita na trama: no livro original, Pimentel é auxiliado na investigação por Alberto, um jovem estudante de medicina do alto de seus 20 anos de idade e que se apega ao caso justamente porque seu irmão Hugo foi uma das vítimas. No filme, as idades de Hugo e Alberto mudam e o protagonista vira o irmão mais novo, com apenas 13 anos. “A investigação dos crimes cria uma forte relação entre o Alberto e o policial Pimentel. Achamos que o olhar de um garoto na história dialogaria melhor com o público infantojuvenil”, explica Milani. “Por estarem em uma fase de descoberta do mundo, as crianças são mais criativas e acabam me desestabilizando. Gosto muito disso, vou para o set sem nenhuma certeza”, conta Caruso.
O intérprete de Pimentel explica que seu personagem tem síndrome de Lewy e passa por momentos de esquecimento. “A união dele com o garoto funciona de forma quase inconsciente. Enquanto um está na descendente, o outro é um menino que precisa ascender”, afirma. “Ele é um policial que está perdendo a memória, desiludido com a vida, sem conseguir mais ter atenção ao trabalho de investigação. Enquanto isso, o menino está cada vez mais esperto, ligando os fatos e ajudando na investigação. É bonito isso”.
Para Thiago Rosseti, o menino que vive Alberto, a relação entre os dois pode ser resumida em uma cena em particular. “O Pimentel começa a falar com o meu personagem como se ele fosse um adulto. E o Alberto, uma criança, conversa como se o policial fosse uma criança, porque ele está doente e perdendo a memória”, revela ele, para a Folha. Tanto quanto Milani, o Rosseti também é um iniciante no mundo do cinema. Além de uma série de aparições em campanhas publicitárias, o jovem ator se tornou conhecido do público infantil ao interpretar o personagem Atílio, na versão brasileira da novela Carrossel (SBT).
Os mais velhos podem ficar de olho em uma participação especial PECULIAR: o quadrinista Lourenço Mutarelli vai viver um jardineiro, em mais um passo de sua missão de se tornar coadjuvante obrigatório de qualquer filme pop do cinema nacional. ;)
O Escaravelho do Diabo, o filme, tem estreia prevista para o dia 14 de Abril.