Estados Unidos, o Império Secreto e a esperança | JUDAO.com.br

Saga da Marvel nos quadrinhos continua, mas são os acontecimentos no mundo real que mais assustam

Os últimos dias foram assustadores. Se você acompanha minimamente o noticiário viu que a cidade de Charlottesville, na Virginia, foi palco de manifestações nazistas. Uma mulher, Heather Heyer, de 32 anos, que estava no local protestando contra esse absurdo que a gente tá tendo de viver em pleno 2017, acabou morta após um dos nazistas cometer um ato terrorista muito parecido com os que o estado islâmico tem realizado nos últimos tempos, ferindo também diversas pessoas. Um helicóptero da polícia, em ação ligada aos protestos, também caiu e matou outras duas pessoas.

“Qual a relação disso com quadrinhos?”, alguém talvez esteja se perguntando. Eu diria que toda. Como a quadrinista Gail Simone lembrou no twitter, as HQs de super-heróis foram, quase que desde o começo, uma grande ferramenta de combate ao nazismo. Superman, Batman, Tocha-Humana e, obviamente, Capitão América, entre outros, lutaram contra eles na ficção. A hashtag #ComicsHateNazis passou a trazer inúmeros exemplos de heróis dos gibis socando nazistas. Ou seja: se você curte quadrinhos, a mensagem sempre esteve bem clara.

Mas não foi só isso, não. No fim de semana, Donald Trump também usou o Twitter para fazer declarações sobre os ocorridos na Virginia – e, de uma forma que faz sentido apenas na cabeça do presidente, não nomeou nazistas como o problema. Mais do que isso: disse que a violência partia “de muitos lados”.

Foi o suficiente para atrair a atenção para uma terceira conta no Twitter. Uma genial e tristemente necessária: Pres. Supervillain, na qual todas as falas de Trump são colocadas em balões de diálogo do... Caveira Vermelha. E cabem como uma luva.

SPOILER! E é assim que esta linha de raciocínio chega naquele que, pra mim, é um dos crossover mais importantes já publicados pela Marvel, mais relevante para o mundo até do que foi a Guerra Civil – isso apesar de seus problemas de roteiro, suas inconsistências na arte e até mesmo sem receber a atenção merecida de leitores e críticos. Sim, eu estou falando de Secret Empire.

Até agora, foram publicadas oito das dez edições programadas, mais um número 0. A última saiu no dia 8 de Agosto, e a próxima está programada para o próximo dia 23. Como você já leu aqui no JUDÃO, descobrimos que Steve Rogers sempre foi um agente da HYDRA – inicialmente infiltrado nos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, depois manipulado pelo Cubo Cósmico para ser um real defensor dos EUA. Porém, Kobik, uma versão consciente do Cubo Cósmico, fez com que o Capitão América voltasse a sua personalidade original. Sem o mundo saber, ele assumiu o controle da SHIELD, orquestrou um golpe de estado e passou a comandar nos EUA junto com a HYDRA.

Secret Empire, então, discorre sobre os esforços dos heróis em tirar Steve do poder, enquanto outros tentam sobreviver em meio às armadilhas que o Capitão deixou. Parte deles quer usar o Cubo para fazer com que o Bandeiroso volte a ser quem eles acreditam ser a versão correta, enquanto outra (liderada pela Viúva Negra) quer matá-lo.

Dessa forma, o gibi tem usado uma grande alegoria para jogar na nossa cara os diversos problemas dos EUA e da sociedade de todo o mundo. As pessoas que querem o bem se dividem em facções, tomam ações isoladas e, por muitas vezes, discutem e arranjam problemas entre si – enquanto o outro lado, o que luta contra tudo aquilo que eles acreditam, cresce.

Aliás, mais do que cresce: vence. Em Secret Empire #7, a Viúva Negra orquestrou um ataque contra o Capitão durante uma cerimônia no Capitólio. Acabou morta pelas mãos dele próprio. Steve, aliás, sofre com a decisão. Afinal, por mais que haja diferenças ideológicas, ele sempre valorizou a Natasha Romanoff.

Porém, não é exatamente isso que me faz pensar sobre os acontecimentos em Charlottesville. Na realidade, isso acontece um pouco antes na mesma edição #7, quando Natasha enfrenta ninguém menos que o Justiceiro, agora um agente à serviço da HYDRA. Ao ser confrontado do porquê estar ajudando aqueles que seriam os vilões, Frank Castle responde que “ele está certo sobre vocês todos. Vocês são muito fracos para fazer o que precisa ser feito”.

Capa de Secret Empire #8, com Sam Wilson reassumindo o manto de Capitão Américo e se colocando como o mensageiro da esprança

Na prática, todas aquelas pessoas marchando em apoio às causas extremas acreditam que estão fazendo aquilo que precisa ser feito, que atitudes duras precisam ser tomadas para, de alguma forma, manter seus privilégios, seu modo de vida – mesmo que esse “modo de vida” não mude se outras pessoas ganharem mais oportunidades.

Por tudo isso, no Universo Marvel, Steve Rogers declara guerra.

Ainda assim, com tanto peso no roteiro de Nick Spencer, a edição #8 me fez perceber onde ele quer chegar: no otimismo. Porque, quando os bons não se calam, é possível fazer a diferença, vencer qualquer escuridão (representada, na alegoria do gibi, na matéria negra que cobre Nova York finalmente derrotada), qualquer barreira (em Secret Empire, representada pelo escudo no entorno da Terra, também destruído na edição #8). Pode ser uma visão inocente, é verdade, mas talvez precisemos exatamente disso em meio à tanto cinismo.

Os Estados Unidos são, e sempre foram, o Império Secreto do mundo real. A eleição de Trump foi como revelar a verdadeira natureza do Capitão América: apenas mostrou a parte ruim da sociedade, aquela que preferíamos ignorar ou ficava escondida. Nos gibis, foi a HYDRA. No mundo real, são os nazistas (como a HYDRA) — aqueles que o mesmo Capitão América socava nos anos 1940.

Mas isso está também movimentando as pessoas que são contra estes pensamentos, está deixando claro o quão ridículo é defender uma “supremacia branca”. Por isso o otimismo: talvez, lá no fundo, saiamos melhores disso do que entramos. Talvez.

O que parece certo é que, do jeito que as coisas estão, elas vão passar. Donald Trump não tem a mesma finesse estratégica de Steve Rogers. E, na ficção, o líder supremo já não parece ter um futuro muito longo...