Antes que você responda “ah, que demais!”, devo dizer “não, esta ideia é horrorosa”. E eu explico.
Recentemente, em um AMA no Reddit para divulgar o filme Sin City: A Dama Fatal, o co-diretor Frank Miller foi questionado sobre seu outro lado, o de roteirista de quadrinhos. Mais especificamente, sobre que super-herói ele ainda gostaria de escrever. Afinal, apesar de afastado do gênero por anos, ele fez história em suas passagens pelo Demolidor (mais especificamente com A Queda de Murdock) e principalmente pelo Batman (com as icônicas Batman: Ano Um e O Cavaleiro das Trevas). A resposta surpreendeu:
“Eu voltaria ao Capitão América, porque eu acho que ele tem um anacronismo maravilhoso. Ele tem virtudes que meu país esqueceu ou usou fora de contexto durante muitos anos. Apenas alguns dias depois dos atentados de 11 de setembro, eu me lembro de dizer para o pessoal da Marvel que esperava que eles tivessem consciência do que tinham em mãos, porque a resposta do Capitão América teria que ser bem direta”.
Miller chegou a trabalhar muito brevemente com o Capitão, mas apenas como desenhista, fazendo capas para revistas do personagem entre 1980 e 1981. Além disso, ele chegou a fazer duas histórias do Capitão nas antologias Marvel Fanfare e Captain America: Red, White & Blue. Nada muito denso e complexo, leia-se.
Mas antes que os fogos de artifício comecem, eu já vou bancar o chato e cortar o seu barato, dizendo que a ideia, caso a Marvel realmente a considere, é muito, mas muito ruim. Parece que, em certo ponto, até mesmo o editor executivo da Casa das Ideias, Tom Brevoort, concorda comigo. Questionado sobre o assunto no seu Formspring (viu, alguém ainda usa isso!) oficial, ele disparou: “Até onde eu sei, Frank nunca falou sobre este desejo com ninguém na Marvel. Nós certamente estaríamos interessados no projeto, dependendo da história que ele gostaria de escrever. Eu não acho, por exemplo, que seguiríamos com Holy Terror como uma história do Capitão América”.
Bingo, Brevoort. Você matou a charada.
Claro, eu poderia basear minha crítica a esta ideia inteiramente no retrospecto recente de Miller como quadrinista. O sujeito tem um passado brilhante, criou obras memoráveis e, ao lado de Neil Gaiman e Alan Moore, se inseriu no panteão sagrado dos quadrinistas contemporâneos. Mas evoluiu bem mal, envelheceu porcamente. Basta ver, por exemplo, o resultado da desnecessária segunda parte de O Cavaleiro das Trevas, um desfile de vergonha alheia que se espalha por cada página, um acinte que quase apaga o brilho da obra original. Logo, não, não ando com nenhuma vontade de ler gibis recentes escritos por ele e não tenho nenhuma ilusão de que ele possa criar um novo clássico estrelado pelo Bandeiroso.
Mas não, o grande problema de ter Miller escrevendo o Sentinela da Liberdade veio nas entrelinhas da declaração de Brevoort. Porque, ao contrário do que pensa Miller, a Marvel soube exatamente o que fazer com Steve Rogers depois de 11 de setembro. E não foi, ainda bem, nem de longe o que o autor sugeriu. Contando com a brilhante arte de John Cassaday, o escritor John Ney Rieber relançou o personagem em um contexto bastante diferente daquele que vinha vivendo até então. O mundo mudou. E como estamos falando de um supersoldado que veste a bandeira dos EUA, que é o símbolo do patriotismo na terra do Tio Sam, nada mais natural do que, exatamente como aconteceu ao final da Guerra do Vietnã, questionar o seu papel no mundo.
Rieber não foi brilhante. O roteiro foi, até certo ponto, vacilante. Mas sua grande virtude foi a coragem. Ele tornou Rogers um homem que não acata ordens facilmente – e que, diferente do que Miller gostaria, diferente do que Miller fez na vergonhosamente ruim trama de Holy Terror, não enxergava o mundo com os muçulmanos no papel de vilões. Rieber adicionou tonalidades de cinza ao mundinho preto e branco do Capitão América. E colocou uma pitada de dúvida sobre quem seriam os culpados e quem seriam os inocentes. Aliás: é tão fácil assim? Existem mesmo culpados e inocentes nesta história toda? Teria sido muito mais fácil, como foi com os nazistas na Segunda Guerra Mundial, colocar Steve Rogers para distribuir sopapos em vilões estereotipados do Oriente Médio. Ainda bem que a Marvel evitou este caminho simples.
Além disso, goste você ou não, foi o trabalho de Rieber que abriu as portas para a Guerra Civil de Mark Millar, que colocou o Capitão América justamente contra o governo dos EUA e contra Tony Stark, seu melhor amigo e representação máxima do corporativismo. E também foi a abordagem corajosa de Rieber que, aí sim, deu espaço para que, mais tarde, o roteirista Ed Brubaker assumisse o título do Capitão e fizesse uma das mais brilhantes passagens que o herói já teve. Com doses de teoria da conspiração e uma paranoia típica de filme de espionagem dos anos 70, Brubaker desconstruiu o mito do Bandeiroso e nos deu um Steve Rogers que voltou a questionar o seu próprio papel no mundo – em uma ambientação que serviu de inspiração para o segundo filme do herói das estrelas e das listras.
Seria triste, mesmo que numa série fechada ou edição especial, ver a Marvel voltando atrás e entregando o Capitão América nas mãos de um sujeito que trataria o personagem como um babacão retrógrado, um soldadinho anos 50 que vai defender sua bandeira a qualquer custo.
Porque, vejam só. Não importa se Miller é um gênio ou apenas a sombra de um gênio. O que importa é que ele é um conservador assumido. E isso é um pé no saco.
Vamos deixar uma coisa clara aqui: quando digo que Miller é um conservador, entenda que isso é bem mais grave do que dizer, como a geração de questionadores de sofá das redes sociais ama, que ele é um “coxinha”, um “quadradão”, um “reaça”. Esqueça os posts engraçadinhos do Facebook. A postura de Miller chega a ser assustadora.
Estudiosos dos quadrinhos já levantaram uma série de teorias de que este tipo de postura pode ser facilmente vista na própria obra de Miller nos gibis. Desde o Batman que, em O Cavaleiro das Trevas, insatisfeito com o governo, toma a justiça nas mãos e monta seu próprio exército para varrer os anarquistas baderneiros das ruas até o retrato, quase anti-islâmico, que ele faz dos persas em 300 de Esparta. Mas não precisa ir assim tão longe. Basta dar uma lida no blog do sujeito para sacar no que ele acredita.
Destaco um único post: aquele no qual Miller resolve criticar os jovens do movimento Occupy, que tomaram o centro financeiro de Wall Street para protestar contra a situação social e econômica do país. “Um lixo”, definiu ele. “Um grupo de arruaceiros, ladrões e estupradores, uma multidão incontrolável, alimentados pela nostalgia da era de Woodstock e pela falsa justiça. Estes palhaços não podem fazer nada além de prejudicar a América”. Para ele, este grupo de jovens deveria estar no exército, combatendo a Al-Qaeda e o islamismo (!!!). Era óbvio que dizer que os manifestantes eram “ladrões e estupradores” e que os seguidores do Islã eram o inimigo não ia passar impune e choveram críticas ao seu posicionamento.
Miller ficou irritadíssimo ao ver que boa parte da comunidade dos quadrinhos, entre fãs e outros criadores, detonou as bobagens que ele resolveu dizer. E, bingo, eis que disparou mais um caminhão de asneiras. “Eu desejo a todos os responsáveis pelo 11 de setembro que queimem no inferno. Estou velho demais para servir o meu país de outro jeito. De outra forma, eu mesmo puxaria o gatilho”.
Ou seja: o lance é resolver na bala mesmo. É acreditar que todo muçulmano é um terrorista em potencial. E convenientemente esquecer da quantidade de gente que o governo dos EUA matou em todos os países nos quais resolveu atuar como polícia do mundo.
E você ainda querem este sujeito cagando na obra do Brubaker? De verdade? Obrigado. Eu dispenso, de coração.