Gotham: consumida por dentro | JUDAO.com.br

Ao se deixar levar pelo que aparentemente deu certo logo de cara, a primeira temporada da série se perdeu e não entregou tudo aquilo que poderia ser

Era o sábado da San Diego Comic-Con 2014. De forma inédita, a Warner fechou o Hall H por três horas em uma programação especial apresentada pelo Stephen Amell (o Arqueiro Verde, se não ligou o nome ao capuz) para revelar as novas séries baseadas nos quadrinhos da DC: Gotham, The Flash e Constantine (iZombie era, ainda, uma estreia muito para o futuro). De todas elas, era claro que aquela sobre a cidade do Batman que mais chamava a atenção, até porque era a única das novidades que ainda não tinha vazado pelas interwebs. E a apresentação do episódio piloto, naquela noite, fez jus à a expectativa, como falamos na época.

Agora, com a primeira temporada devidamente completada — e uma segunda já encomendada, dá pra dizer que toda aquela expectativa virou fumaça. Talvez nem isso, já que nem chegou a pegar fogo...

Eu tentei acreditar. Aliás, por um tempo, eu realmente acreditei. Inicialmente, tínhamos realmente duas histórias bacanas rolando: uma sobre como Bruce Wayne passa pela perda dos pais e cresce para no futuro ser o Batman; uma como o jovem detetive James Gordon se desenvolve em meio a uma polícia corrupta para se tornar um íntegro comissário; no meio, algumas daquelas pessoas que se tornarão os maiores inimigos do Cavaleiro das Trevas. Tudo isso numa cidade sem amarras no mundo real, que permite abordar a corrupção e os crimes de uma forma que, talvez, deixariam os caras de CSI e Law & Order com medo.

Só que uma série não funciona apenas com uma boa proposta e um bom piloto. Ela precisa de um bom plano para toda a temporada. Da mesma forma que um roteiro de um episódio (ou de um filme, HQ, game...), que pode ser dividido classicamente em três atos (ou seja, Apresentação, Conflito – que por sua vez pode ser dividido em dois – e Resolução), o mesmo é feito com o desenrolar da temporada de uma série como essa. Os episódios também funcionam como pontos de virada da trama maior, com aqueles acontecimentos que fazem explodir sua cabeça e vão direcionando a história pro final que os roteiristas propõem.

Isso não aconteceu com Gotham. Não, ao menos, de forma competente. O começo até que realmente faz a apresentação dos personagens, mas corre pra colocar muita gente na tela que depois não é mais utilizado (como os detetives Crispus Allen e Renee Montoya) e tenta ter episódios como uma clássica série de procedural, mas são extremamente bobos na resolução; no meio, a série muda o rumo e tenta introduzir outros clássicos vilões do Batman, como Coringa e Espantalho, mas sem realmente contribuir pra história maior; no final, gasta três episódios sobre um assassino em série de mulheres em um enredo cheio de furos e que poderia ser condensado em um só.

Barbara Kean: NADA que fizeram com ela deu certo

Barbara Kean: NADA que fizeram com ela deu certo

No final, a história maior dessa temporada (já que as investigações de Bruce sobre os pais dele e a ascensão de Gordon são tramas que vão correr por TODA a série) era o conflito entre os mafiosos Sal Maroni e Don Carmine Falcone, mas a briga de gangues só realmente estoura (e é solucionada) no último episódio.

E isso, na pressa, acaba levando a soluções que parecem estranhas, como a total mudança da Selina Kyle nesse último episódio.

Em produções assim, tradicionais, semanais e longas, há uma grande possibilidade de entender a recepção do público e o desempenho de acordo com o andamento da trama, mudando o que precisar mudar no decorrer da brincadeira – desde que o plano final faça sentido. Foi legal dar mais destaque pro Pinguim depois do que o ator Robin Lord Taylor fez no início, mas, ao dar o espaço que seria da Fish Mooney (que foi jogada num subplot booooring) pra ele, os roteiristas perderam a mão na luta entre os mafiosos da cidade, que seria inicialmente mais movimentada por ela. Virou apenas um grande “o Pinguim quer foder todo mundo”, que nunca foi muito bem desenvolvido.

Ainda falta um looooongo caminho pro maior detetive do mundo...

Ainda falta um looooongo caminho pro maior detetive do mundo...

Quer um exemplo de plano bem pensado e depois bem desenvolvido? A primeira temporada de The Flash (e você achou que a gente ia falar de Agents of SHIELD, só pela referência obrigatória à Marvel, né? ;D). Não quero comparar, mas veja: temos logo de cara a morte de Nora Allen pelo Flash Reverso; a apresentação do Harrison Wells e seus mistérios; as pistas do futuro; a revelação de que Wells e o Reverso são o mesmo cara; os flashbacks de como ele matou o verdadeiro Wells; e as lutas entre o herói e o vilão, culminando num aguardado season finale. Tudo isso distribuído durante os 22 episódios, formando uma história maior que te faz acompanhar a série e desenvolve os personagens, empolgando o telespectador ALÉM dos plots que são mostrados e resolvidos episódio a episódio.

Mas, é bom deixar claro: mudar de ideia no meio da temporada não é desculpa pra um resultado ruim. Um outro exemplo: a segunda temporada de Buffy (pensou DE NOVO, né? ;D), que era inicialmente sobre a luta da Caça-Vampiros contra um outro vilão, mas a introdução do Spike logo no terceiro episódio mudou os planos do Joss Whedon. O que era pra ser uma participação pequena fez com que ele se tornasse o grande badass daquela que é uma das melhores (se não for a melhor) temporada de Buffy. E, bom, quem viu aqueles episódios sabe muito bem qual é o grande plot twist da temporada, que colocou alguém mais vilão que o Spike e também começou a definir a transformação dele de herói pra anti-herói. Hoje, o vampiro inglês é um dos mais queridos personagens do universo criado pelo Whedon.

Bom, Gotham foi renovada pra mais uma temporada. São teoricamente mais 23 episódios e agora o produtor Bruno Heller sabe exatamente tudo o que funcionou e o que deu errado. Ele pode pensar com calma numa história pra encaixar pra tudo isso – que, se fosse eu, aproveitava a nova luta pelo poder no submundo da cidade instigando a galera pra saber quem ficará nos lugares de Maroni e Falcone, algo que naturalmente dará espaço para o Pinguim E também pra diversos vilões que já deram as caras na primeira temporada; além de ir mais fundo nessa exploração do passado de Thomas Wayne que está sendo feita pelo Bruce, mas com algo que REALMENTE estremeça mais o status quo do personagem ao longo dos episódios, sem deixar a grande revelação apenas pra, literalmente, a última cena.

Se, em 2016, quando eu vier aqui pra falar da segunda temporada, as coisas não forem diferentes, não custa nada lembrar que a série terá tido MUITO mais chances pra dar certo do que tantas outras. Constantine...