Guerrilha: uma celebração à mais maldita das bandas do metal BR | JUDAO.com.br

Documentário da dupla Frederico Neto e Alexander Aguiar usa a trajetória de obstinação de Carlos Lopes para entender a Dorsal Atlântica, um dos principais e mais influentes nomes do som extremo no país

PCD. O significado da sigla que batiza a música “proibida” e nunca lançada oficialmente do trio carioca Dorsal Atlântica acabou se tornando um verdadeiro grito de guerra para os caras nos shows ao vivo: pau no cu de Deus. Um exagero? Pode ser. Mas era apenas mais um dos elementos que transformaram a trupe comandada pelo furioso Carlos “Vândalo” Lopes em um mito do underground nacional. As letras provocativas, o visual extremo, as performances de evocação satânica, a vontade de chocar a todo custo com uma sonoridade que misturava elementos do punk e daquele tal de heavy metal, tornando-se o que seria chamado mais tarde de ‘crossover’.

Era o começo dos anos 80. E toda uma geração de moleques cabeludos passou a bater cabeça graças ao que eles faziam naqueles palcos ainda não acostumados com tanta porradaria.

Inclusive, vejam só, um jovem chamado Massimiliano Antônio Cavalera.

O sobrenome já entrega de quem se trata e que, depois de ver a Dorsal ao vivo, teve a ideia e a vontade de montar a sua própria banda, devidamente batizada de... bom, você já sabe. O ponto é que, diferente do filhote famoso dos Cavalera, a Dorsal jamais estourou de fato. E se tornou uma espécie de banda amaldiçoada e maldita, que nunca se cansou de ousar, que falava sem papas na língua sobre religião e política, que sempre quis experimentar um pouquinho mais, que vivia lutando contra a falta de grana e cuja formação mudou tantas vezes quanto se meteu em confusões e deu dores de cabeça ao seu incansável líder.

“Acho que o principal motivo pra escolha da Dorsal é o Carlos enquanto frontman, porque a história dele se confunde com a história da banda, e o que dá uma certa dramaticidade pra toda a coisa é justamente isso”, explica Alexander Aguiar, diretor, ao justificar a seleção do real protagonista de Guerrilha – A Trajetória da Dorsal Atlântica, documentário rodado ao lado do amigo Frederico Neto. “A história da Dorsal é, antes de tudo, a história da origem do Thrash Metal nacional”.

Tanto Alexander quanto Frederico, dois metalheads assumidos, são fãs da banda e, na verdade, acabaram se aproximando na faculdade justamente pelos gostos em comum. “Uma vez, ele estava se desfazendo da coleção de discos e me lembro que o único que ele não quis me vender era justamente o Antes do Fim (primeiro disco da Dorsal, lançado em 1986 e considerado um dos mais importantes do metal nacional)”.

O diretor conta ainda que o fato de ambos gostarem tanto da banda criou algumas contradições na hora de fazer o filme. “Toda a parte histórica da Dorsal sempre se baseou muito na versão oficial do Carlos. E como a gente acompanhou a banda especialmente na época em que o Carlos estava metido nas maiores polêmicas – deixando de tocar em português para compor em inglês, com foco no mercado internacional, por exemplo – muito dessa história acabou soando contraditória, tendo versões distintas. Nosso papel, enquanto diretores, era tentar dar uma pluralidade pra essas vozes ao redor da Dorsal”.

Anvil! foi a semente para o documentário sobre a Dorsal Atlântica.

A semente do filme surgiu em 2008, quando saiu o documentário a respeito da história do trio canadense Anvil, liderado pelo igualmente obstinado Steve “Lips” Kudlow. O divertidíssimo filme, conduzido por Sacha Gervasi, mostra justamente o lado mais humano do outro trio que, apesar de ter influenciado nomes como Metallica, Megadeth e Anthrax, nunca chegou nem perto de vender milhões de álbuns. O resultado? O filme, bastante premiado, tirou o Anvil da obscuridade e ajudou os caras a entrarem novamente no circuito dos grandes festivais.

Eis que Frederico ficou com aquilo na cabeça. Ainda mais depois de ler o livro Guerrilha!, escrito pelo próprio Carlos Lopes ainda em sua época de renegar o metal, tocando no Mustang (banda de rock n’ roll clássico) e no Usina Le Blond (grupo de funk psicodélico bem na vibe James Brown). Em 2011, quando fazia estágio na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Frederico chegou a marcar um papo com o músico para transformar a obra em filme. “O projeto inicial era outro, algo menor e mais direto”, conta. “Mas quando saiu a campanha do novo disco/volta da banda, em 2012, começou a saga”. E a produção que era apenas um média/curta feito com dinheiro próprio (“vindo de um trampo como garoto-propaganda, vexame total bem no Dia dos Namorados”) e de um prêmio de roteiro de cinema documentário, acabou se tornando uma parada mais ambiciosa. Foi quando veio a ideia do financiamento coletivo, que teve apoio da própria banda.

“Fora do apoio de verba, teve ainda muito fã que mandou material de arquivo como vídeos de shows, fotografias e zines. Isso ajudou muito na narrativa e no crescimento do próprio documentário. Algo que dinheiro não compra”, afirma Frederico. E embora não tenham conseguido, conforme o planejado, percorrer o “eixo” da música extrema no Brasil dos anos 80 (“estávamos filmando essa parte do filme durante as jornadas de junho de 2013, literalmente em meio às bombas de efeito moral, retaliação policial e correria desordenada”), conseguiram conversar com integrantes de algumas das maiores bandas da época, roadies, jornalistas especializados e nomes consagrados que acompanharam de perto o trabalho do trio, como João Gordo e Gastão Moreira (apresentador do lendário Fúria Metal, da MTV).

O próprio líder e fundador da Dorsal ajudou na pesquisa e produção de arquivos, cedeu uma série de músicas e ainda deu uma mão na contextualização de algumas entrevistas no roteiro de montagem, ganhando o cargo de produtor associado nos créditos. Mas Frederico faz questão de avisar: “a banda não teve gerência sobre nada e nem sobre quem participou do filme”.

O documentário teve três alterações no decorrer de sua produção, mas o corte definitivo saiu no início de 2015 e foi refinado ao longo do primeiro semestre. “Foi difícil acertar com os fornecedores a qualidade que buscávamos e os prazos de entrega”, afirma Frederico. No primeiro semestre de 2016, a produção foi pro circuito de festivais e, depois de passar no In-Edit Brasil, teve sessões no circuito alternativo em Curitiba, São Paulo, Santos e Rio de Janeiro. Ah, é, e na Eslovênia também. OI? “Eu nunca tive retorno dos organizadores sobre como foi a sessão, mas pelo que vi passou por lá mesmo: até ganhou um título em esloveno!”, brinca Alexander.

Este ano, já estão adiantadas as negociações para que o filme entre no circuito comercial e então vá parar na televisão por assinatura. “No cinema, as coisas demoram e são mais complexas, a média para fechar um filme é de quatro anos. Isso quando tem verba”, diz Frederico. “No nosso caso foi osso duro de roer, mas é gratificante o retorno que a gente tem das pessoas, principalmente de quem não é envolvido com metal”.

Uma série de problemas também levaram a um atraso de mais ou menos um ano na entrega das recompensas do Catarse. Para compensar a espera dos apoiadores, Frederico e Alexander bateram um papo com a Dorsal para lançar junto um EP promocional, com canções que ficaram de fora de 2012, o álbum que trouxe os caras de volta depois de quase uma década fora do mercado. “São as músicas Guerrilha e O Retrato de Dorian Gray, que foram remixadas e remasterizadas”.

Depois de Imperium (de 2014), sobre a história do Brasil, atualmente a Dorsal Atlântica está no meio de mais uma campanha de crowdfunding, agora para financiar Canudos, uma autointitulada “ópera thrash” sobre a cidade de excluídos sociais erguida no interior da Bahia sob o comando do religioso Antonio Conselheiro, no século XIX. Em um universo povoado essencialmente pelo imaginário de horrendos e sanguinários herdeiros de Satanás ou de anões, elfos, dragões e guerreiros mágicos da mitologia nórdica, parece que Carlos está disposto a ousar uma vez mais.

“Por mais que a gente entenda o legado histórico e pioneiro da Dorsal, é a obstinação do Carlos em criar a sua própria arte que acaba ficando como mensagem final do filme”, completa Alexander. “Basicamente, o que importa é essa questão humana, a história de um outsider da música nacional, que foi o grande visionário de uma cena que iria ganhar o mundo depois”.