Reação no Twitter após declarações da roteirista de Mockingbird mostra que muita gente, infelizmente, ainda quer ver o mundo moldado apenas para elas
Em 1954, por causa de umas bobagens escritas por Frederic Wertham no livro Sedução do Inocente, a indústria dos quadrinhos dos EUA se impôs uma autorregulamentação, o chamado Comics Code Authority. A partir dali, todos os gibis publicados por elas deveriam seguir as mesmas regras, uma mesma opinião sobre o MUNDO ditaria o que seria visto nas HQs. Policiais e políticos deveriam ser sempre “pessoas de respeito”, não poderia haver “violência excessiva”, muito menos “anormalidades sexuais”, e por aí vai.
Os quadrinhos, de forma geral, passaram a refletir uma visão específica de mundo, quase que totalmente sexista e preconceituosa, muitas vezes com as mulheres definitivamente reduzidas ao papel de donzelas em perigo.
Demorou, mas a indústria de HQs dos EUA conseguiu superar esse momento sombrio de sua história. Aos poucos aquelas regras foram ficando de lado e a Marvel parou de submeter suas revistas ao código em 2001, enquanto a DC só o fez dez anos depois, terminando com o selo de vez. Surgiu então uma classificação por faixas etárias, mais eficiente, junto com uma necessidade das grandes editoras de dialogar com um público mais abrangente. Não é, ainda, um mundo perfeito, mas a indústria de quadrinhos vive seu melhor momento de diversidade e vendas, ao menos considerando dos anos 1990 pra cá.
Só que, infelizmente, parece que a cabeça do leitor médio, aquele TRADICIONAL, ainda tá em 1954. E mais uma prova surgiu na última semana, envolvendo a personagem Harpia.
A Marvel publicou na quarta-feira passada (26) a última edição programada para o gibi da personagem antes do cancelamento. Nada, ao menos inicialmente, fora do normal: a revista estava vendendo lá pelos 14 mil exemplares por mês, perigosamente perto do limbo, e com a heroína fora do elenco de Agents of SHIELD fica difícil justificar o título por mais muito tempo. Eles poderiam esperar mais alguns meses, ver o comportamento do primeiro encadernado e tudo mais, mas ok, faz parte do jogo.
Só que aí, com Mockingbird #8 chegando às comic shops, a roteirista do título, Chelsea Cain, CONCLAMOU leitores e leitoras via twitter para ficarem de olho e terem certeza de que a editora substituirá a revista cancelada com algo na mesma linha, com uma personagem feminina chutando bundas – algo que, ao menos publicamente, a Marvel tem se gabado de fazer nos últimos anos.
A mensagem acabou caindo no Lado Sombrio das internets, cheio de gente tomada por seu rancor, ódio e a necessidade de fazer com que a sua opinião seja a única aceitável – mais ou menos como o Código fazia até algumas décadas atrás. Esse pessoal não só começou a atacar Chelsea, alegando que ela tinha uma necessidade de “autoafirmação” ao postar aquilo, como também “descobriu” a atual fase da personagem Harpia, que tem um interessante viés feminista. Na verdade, eles nem devem ter se dado ao trabalho de ler: apenas viram a camiseta que a Bobbi está usando na capa da última edição.
Não dá pra (e sinceramente nem queremos) reproduzir aqui a maioria das opiniões, mas teve gente, por exemplo, alegando que “quadrinhos não são pra todo mundo” e que “algumas pessoas não deveriam ser permitidas a ler ou criar quadrinhos”.
Brian Michael Bendis – que vem debatendo uns assuntos MUITO importantes com Civil War II – chegou a tentar conversar com a roteirista, explicando que o problema não é apenas nos quadrinhos. Porém, ela levantou algo importante: numa carreira como escritora de livros que vem desde 1996, sendo autora da série de best-sellers Gretchen Lowell desde 2007, aquela era a primeira vez que Chelsea estava banindo alguém no Twitter. Isso após estrear como roteirista de, querendo ou não, um título pequeno das HQs.
“Durante a existência da série, o tom do meu feed no Twitter mudou. Leitores de quadrinhos são, em 99% dos casos, as melhores pessoas que você quer conhecer. Os outros 1% podem ser realmente malvados”, disse a autora em seu blog pessoal . “Talvez essa estatística se aplique a todos os humanos, em geral, mas, na minha experiência, esse são um tipo diferente de malvados. São misóginos, cheios de escárnio e com obsessão para derrubar as outras pessoas”. Além disso, ela explicou que recebia mensagens de ódio a cada nova edição que era publicada. “Os tweets que me chateavam nunca foram sobre o conteúdo, foram aqueles que questionavam meu direito de escrever quadrinhos, e que estavam revoltados com a ideia de uma heroína tendo a própria revista”.
Com tantos ataques, Chelsea Cain resolveu abandonar o Twitter de vez. “Eu desativei minha conta. Me levantei. E fui passear com meus cachorros”. Já vimos esta história, não é?
Axel Alonso, editor-chefe da Marvel: “eu estou do lado da Chelsea Cain, condeno o assédio online e acredito que o Universo Marvel, e a indústria, se beneficiam e crescem com a diversidade de criadores e personagens”
Não demorou pra surgir a hashtag #StandWithChelseaCain, com mensagens de apoio, e também no twitter o editor-chefe da Marvel, Axel Alonso, disse que “eu estou do lado da Chelsea Cain, condeno o assédio online e acredito que o Universo Marvel, e a indústria, se beneficiam e crescem com a diversidade de criadores e personagens”.
Só que existiu também outro resultado prático disso tudo: Mockingbird acabou atraindo a atenção que faltou lá atrás pra vender além dos 14 mil exemplares por revista. O primeiro volume do encadernado, que reúne as cinco primeiras edições da publicação e um especial, apareceu em pouco tempo entre os mais vendidos da Amazon na categoria Comics & Graphic Novels. Em certo momento, Mockingbird Vol. 1: Let Me Explain chegou a ser visto como quinto mais vendido, e o primeiro da Marvel. Não demorou para a Casa das Ideias se movimentar e colocar em pré-venda (com lançamento pra abril de 2017!) o segundo volume, reunindo as edições finais, chamado justamente de Mockingbird Vol. 2: My Feminist Agenda.
Alguns dias depois dessa história, Mockingbird Vol. 1 continua como a HQ mais vendida da Marvel na Amazon, na frente de, por exemplo, encadernados de Doutor Estranho e Old Man Logan, turbinados pelo hype dos cinemas.
Disso tudo, fica a lição de que não só não podemos deixar o mundo voltar a uma era do Código e regras rígidas do que “é certo ou errado” apenas pela visão de alguns, mas que também existe toda uma necessidade reprimida por publicações como essa da Harpia. Pode ser que donos de comic shop – conhecidamente mais ~tradicionais – simplesmente não apostem nesse tipo de publicação e não encomendem, o que faz com que não cheguem nas mãos das leitoras. Ou pode ser que aquele mesmo pessoal que afastou a Chelsea Cain do Twitter faça o mesmo com muita gente que vai nas tradicionais lojas de quadrinhos.
Não pode ser assim. Não podemos deixar que isso aconteça. O ano de 1954 saiu do mundo, mas ainda falta muito para o mundo sair de 1954.