Uma declaração, uma manchete e pronto: todo mundo começou a querer negar o que viu a vida inteira, que a Hello Kitty é uma gata. Mas você nunca esteve errado.
“Você sabia que a Hello Kitty NÃO é uma gata?“, perguntamos, aqui mesmo no JUDÃO, na última quinta-feira, 28. Christine R. Yano, que passou a vida estudando o fenômeno cultural da Hello Kitty, deu uma entrevista ao jornal Los Angeles Times e afirmou ter sido corrigida pela Sanrio quando escrevia os roteiros de uma exposição que vai comemorar os 40 anos da personagem. “Ela não é uma gata”, disse. “Ela é um personagem de desenho. Uma garotinha. Uma amiga. Mas não uma gata. Ela nunca foi representada como quadrúpede. Ela anda e senta como uma criatura bípede. Ela tem um gato de estimação, porém, chamado Charmmy Kitty”.
A repórter que conversou com a antropóloga, colocou a informação na manchete e ainda comentou que cresceu com a personagem e tudo o que tem a dizer é “MIND BLOWN”. E não foi só ela: o mundo de muita gente caiu, derreteu, despencou, perdeu seu chão. Como assim a Hello Kitty não é uma gata?
“Como assim” o quê? Hello Kitty é uma personagem japonesa. Faz absolutamente TODO o sentido ela parecer com uma gata, ter bigodes, focinho... E não ser uma gata. O que vem de lá não se discute, e nem se deve tentar entender. Mas, ainda assim, a Sanrio mandou avisar, por meio do Kotaku, que a “Hello Kitty foi feita com os traços de um gato. É ir muito longe dizer que a Hello Kitty não é um gato. Ela é a personificação de um gato”.
Mas a própria Sanrio não corrigiu a curadora da sua exposição, oficial, dizendo que ela não era uma gata?
Uh-oh. Existe a chance que tenhamos errado. Não em repercutir a notícia — veja, não é o caso de uma daquelas insistentes notícias sobre uma “Reunião de Friends”, é uma entrevista na qual a repórter ainda reforça a ideia de que não, a Hello Kitty não é um gato. Mas a gente deixou de fora algumas outras coisas tão presentes na nossa cultura pop na hora de, pelo menos, tentar enxergar além do alcance dessa história.
Tartarugas Ninja, Robin Hood (aquele da Disney), Pato Donald, Patolino, Pateta, Babar, Chester Cheetah, Crash Badicoot, alguns personagens de Sandman, Droopy, Roger Rabbit, Gato Félix, Ligeirinho, Howard o Pato, Rocket Raccoon, Maguila Gorilla, Super Mouse, Mickey, Minnie, Rocky & Bullwinkle, Sonic, Thundercats, Tony Tigre, Zé Colmeia, Snoopy, Pedobear. São todos animais, sim, mas com características humanas. Você sabe exatamente QUAL animal que ele é. Mas não diz que ele É o tal do animal. Você não o descreve como tal. É a corrente de pensamento conhecida como antropoformismo – atribuir características humanas a animais como forma de representação. A mitologia grega, por exemplo, é repleta de exemplos como estes — Minotauro, Centauro...
E se por acaso Christine Yano estivesse descrevendo Hello Kitty como um gato e recebeu um WHATS da Sanrio dizendo que, “amiga, não é exatamente assim”? E se ela não soube se expressar corretamente na hora de dizer para o jornal que a “Hello Kitty não é uma gata”? E se a repórter tivesse parado tudo, catado os pedaços – já que sua cabeça havia explodido na hora –, e tentasse entender EXATAMENTE o que ela tinha acabado de ouvir?
A história só ganhou repercussão pela reação da repórter. Porque ela não esperava que Yano sequer sugerisse dizer o que disse, ainda que num campo conceitual – “ela não é uma gata-gata. Ela é uma gata-humana”, ou algo assim. Mickey sempre foi um rato. E isso a Disney (e o Walt Disney em pessoa, enquanto vivo) nunca deixou de dizer. Por mais sutil que seja a declaração, é das primeiras vezes em que uma pessoa falando em nome de uma corporação que é dona de um personagem diz que ele não é uma coisa que, bom, parece inegavelmente ser. Bastou esta fagulha, uma palavra mal-colocada, para que a jornalista acendesse um verdadeiro barril de pólvora.
Hello Kitty – cujo nome verdadeiro é Kitty White – é uma personagem que tem todo um histórico que boa parte das meninas que carregam suas bolsas a tiracolo talvez nem sequer imaginem. Nascida na Inglaterra, ela mora com os pais, George e Mary White, e a irmã gêmea, Mimmy, nos arredores de Londres. É do signo de escorpião, nascida em 1 de Novembro, tem cerca de 5 maçãs (!) de altura e três de peso e sua cor favorita é o vermelho. Até aí, o Donald é um pato que vive em Patópolis, tem sua própria casa, emprego (com o qual ele não tá muito preocupado), carro, sobrinhos.
Mickey tem um cachorro de estimação, o Pluto – mas, veja, o Pluto é um cachorro-cachorro. É uma representação visual com todas as características caninas. Da mesma forma que o Charmmy Kitty. Já o Pateta é um cachorro antropomórfico, uma representação de cachorro com características humanas, com detalhes e reações que vão fundo na sua memória e te fazem construir a imagem canina – por mais que ele esteja dirigindo um carro e reclamando do trânsito, agindo da mesma forma que eu e você. A mesma coisa acontece com a Hello Kitty, que tem bigode e orelhas pontudas, mas não fica usando uma caixa de areia, nem arranhando o sofá. Ela é uma gata. Mas não é.
Se bem que, de acordo com a semiótica, nada disso que a gente tá falando sequer faz sentido, já que tudo o que a gente vê no mundo da animação e dos gibis não é real... ;D