A hora e a vez do Homem de Gelo ser quem ele realmente é | JUDAO.com.br

Um dos X-Men originais, Bobby Drake enfim ganha um título solo, no momento em que o personagem ganha uma bem-vinda camada extra de significado

Se os X-Men foram os personagens que mais sofreram com a zona que foi a cronologia da Marvel nos últimos anos, repleta de idas, vindas e reformulações, não dá pra negar que os cinco integrantes originais do time estão fácil, fácil entre os “mais zoados da história”. A Jean Grey morreu e voltou à vida um bocado de vezes dos jeitos mais esquisitos possíveis, o Ciclope foi de vilão/capacho do Apocalipse a líder revolucionário (e pai de metade dos mutantes viajantes do tempo da Marvel, aliás), o Fera virou um gorila (ou algo assim), um felino (ou algo assim) e depois um clone azul do namorado da Bela, enquanto o Anjo e o Homem de Gelo, bom, estes acabaram eternamente relegados ao papel de coadjuvantes.

Assim que a Marvel começou com esse lance dos personagens-legado — como Sam Wilson no papel de Capitão América, Jane Foster como Thor, Miles Morales como Homem-Aranha e Riri Williams como Ironheart — o roteirista Brian Michael Bendis tomou uma decisão ao mesmo tempo arriscada e muito inteligente nos principais x-títulos. Recorrendo ao expediente da viagem no tempo, aquele sempre com grande potencial de dar bosta, justamente quando o conflito entre as facções mutantes tava mais acirrado ele buscou as versões originais dos cinco X-Men originais quando eles ainda eram ainda adolescentes, um grupo de pivetes inocentes que traziam no coração a versão mais pura da mensagem do Xavier.

Ou seja: acabou que o Bendis fez o caminho contrário da coisa toda. No caso do Deus do Trovão, por exemplo, quem quer ler o Thor clássico, ele tá lá, o Odinson de sempre, guerreiro, cerveja, viking, linguajar rebuscado, mas quem tá no barato de uma versão nova, uma reinterpretação moderna do mito, a versão feminina chegou chutando bundas. No caso dos cinco X-Men originais, a versão atual é que segue em plena mutação (viu o que eu fiz aqui?), Ciclope cada vez mais intenso e pirado, o Fera entrando numa paranoia científica, enquanto os X-Men teens representam o lado mais clássico, aquele que os fãs das antigas conheciam e de quem diziam sentir saudades.

Quer dizer... mais ou menos, né. E aí é que entra o toque de gênio. ;)

Porque o roteirista também fez com que o mundo de hoje afetasse, de alguma forma, os cinco jovens vindos dos anos 60. Jean Grey descobriu novas habilidades e passou a questionar o seu “destino romântico” ao lado de Scott Summers. Enquanto isso, Ciclope foi atrás de suas raízes e aprofundou o relacionamento com seu pai, o Corsário... Mas nenhum deles mudou de forma tão significativa quanto o Homem de Gelo que, cá entre nós, sempre foi um personagem MERDA.

Tiremos a porra do elefante da sala e admitamos que o picolé era tratado só como o palhaço da equipe, o alívio cômico, o sacaneado da vez que fazia umas paradas feitas de gelo, uma espécie de Homem-Aranha genérico — nos Superamigos, ele seria o supergêmeo que só vira uma coisa whatever feita de água. Mas isso até que a Jean Grey descobrisse o seu segredo: o Bobby Drake do passado é gay. E que, sim, o Bobby Drake atual também sempre escondeu isso de si mesmo, sempre se enganou... e também é gay.

É a partir deste momento que se inicia Iceman, o título-solo do Homem de Gelo do presente, a versão adulta que, por causa da versão adolescente perdida no tempo, descobriu uma nova (e interessantíssima) faceta a respeito de si mesmo. O bobo da corte congelado se tornou um personagem com uma camada extra de complexidade e, diabos, isso é uma ÓTIMA notícia. Uma camada que não só confere aquela coisa da representatividade, que você deveria saber o quão importante é e sempre foi, mas também oferece um mundo de novas possibilidades criativas para um dos heróis clássicos da Marvel que NUNCA teve a chance de brilhar sozinho na vida deste jeito.

Com roteiro de Sina Grace e edição de Daniel Ketchum, ambos abertamente homossexuais e bastante presentes e engajados em discussões a respeito do universo LGBTQ+, Iceman # 1 foi lançada oficialmente no último dia 05, não por acaso no mês do ano dedicado à celebração da diversidade sexual. Justamente por isso, o segundo número já sai esta semana, dia 21, para que novos leitores continuem no clima.

A trama criada por Grace, além de evitar resvalar em clichês babacas, trata a descoberta de Bobby com naturalidade, algo que faz parte do todo, da vida de um sujeito que já encarava a desconfiança e o preconceito dos próprios pais por ser mutante, por exemplo. Tudo feito com inteligência, delicadeza e também com a dose certa de humor, em diálogos rápidos, naturais e certeiros. Tudo sem deixar de lado, claro, as tradicionais “piadas de tiozão” que sempre marcaram a a trajetória do herói.

Roteirista e ilustrador com grandes trabalhos no mercado independente/autoral, como as autobiográficas Self-Obsessed e Nothing Lasts Forever, Sina Grace sabe como contar uma boa história sob a perspectiva HUMANA — o importante aqui é Bobby Drake e não o Homem de Gelo. Esqueça as grandes ameaças cósmicas da semana; o foco, entre um momento heroico e outro, está neste cara de seus trinta e poucos anos que desajeitadamente tenta encontrar um par ideal preenchendo o seu perfil em um site de relacionamentos (com 500 caracteres ou menos, tentando se entender, se descobrir, em tantos aspectos possíveis de sua vida, a única descrição possível acaba sendo “¯\_(ツ)_/¯”), enquanto lida com o fato de que sua versão mais nova já está namorando com um jovem inumano.

E, pra completar, existe o fato de que ele namorou um monte de mulheres que ainda estão por aí no universo X, como Polaris e Kitty Pryde (que, já sabemos, é convidada especial no segundo número), com quem vai invariavelmente acabar cruzando, gerando aqueles momentos típicos de uma boa sitcom.

Outro acerto de Grace está em, enfim, questionar o OUTRO lado, o real potencial de Bobby também como herói. Porque, gente, estamos diante de um mutante nível ômega, daqueles que têm o maior potencial genético de toda a espécie. Só que, desde que me entendo por leitor de gibis, o Homem de Gelo apenas anda por aí fazendo aquelas rampas de gelo... Isso é mesmo a prova de seu real potencial ou tem mais coisa debaixo da neve?

“Bobby enfim percebe que está por aí como X-Men há mais tempo do que quase todo mundo e não deixou um grande legado como herói, não construiu uma identidade para si mesmo”, explica Grace, em entrevista ao Nerdist. “Pretendo mostrar como você conhecer e entender a si mesmo ajuda a entender melhor o escopo de suas habilidades, seja você humano ou mutante. Este é um processo que vai mudar não apenas a sua vida pessoal, mas também o jeito que ele se enxerga, como herói”.

No hospital, quando está visitando o pai que teve um problema do coração e acaba se deparando com um daqueles malucos antimutantes que se acham supervilões com uma roupa cheia de traquitanas, Bobby chega a usar truques diferentes para mostrar pro sujeito que, vamos lá, aquele não é um mutante de quem você pode chegar tirando sarro. “I’m the frickin’ Iceman, bozo!”, solta ele, antes de dar cabo do camarada. Em certo ponto, chega a lembrar a passagem de Geoff Johns pelo Aquaman, um herói desacreditado pelo público, por seus pares e até pelo próprio leitor, que enfim mostra a que veio. O potencial narrativo aqui é ENORME.

E entre Bobby e o Homem de Gelo, a pessoa física e o herói, está um outro pedaço deste personagem, o Sr.Drake, professor de um bando de mutantes adolescentes, que só quer ensinar um pouco de tudo que já passou na vida. “Quando comecei, eu só jogava bola de neve nas pessoas”, diz ele para a jovem garota que descobre que seu poder é apenas transformar seu cuspe (!) em artefatos sólidos (sério). “Você nunca vai saber o quão longe seus poderes podem ir se não acreditar em si mesma”, ele ensina, deixando claro que esta é uma lição que vale para ele também, afinal de contas... É professor, mas ainda tem muito de aluno também.

Iceman é aquele tipo de revista com aquele tipo de super-herói que a cultura pop mais precisa nos dias de hoje. É um baita gibi divertido, claro. Mas não é SÓ um gibi. Porque eles nunca são. Ainda bem.