Quando a internet revela um destes produtos nerds muito aguardados, fica sempre a dúvida: de onde ele veio, afinal?
A história é velha e você já deve conhecer muito bem: tem aquele filme e/ou série de TV e/ou disco que está todo mundo babando para conferir, contando os dias até o lançamento. Eis que, como num passe de mágica, o episódio de estreia e/ou a íntegra do filme e/ou todas as faixas do álbum vão parar na internet, dias/semanas antes da data prevista para a estreia. Em alguns casos, chega até a ter meses de antecedência. A grande pergunta, que circula não apenas na cabeça do consumidor final, mas que preocupa toda uma horda de executivos do mundo do entretenimento, é a seguinte: como diabos isso aconteceu? Em que ponto aconteceram estes vazamentos?
Estamos, obviamente, falando de algo bastante diferente do que acontece, semanalmente, com Game of Thrones – é fácil compreender que, com as atuais tecnologias de gravação digital, o episódio esteja disponível na internet praticamente minutos depois de sua exibição na televisão. Mas pense só: seria praticamente surreal que, na quarta-feira, já se pudesse baixar o capítulo de domingão. Pois é. Foi praticamente isso o que aconteceu com o episódio inaugural da oitava temporada de Doctor Who, o primeiro no qual será possível ver o novo doutor, Peter Capaldi, em ação. A estreia oficial está prevista para o dia 23 de agosto.
A cópia, não finalizada, ainda está sem os efeitos especiais e totalmente em preto e branco – além de ter uma marca d’água no topo da imagem dizendo assim: “Property of BBC Worldwide. For screening purposes only”. Logo abaixo, outra marca d’água: “Prepared for Marcelo Camargo at Drei Marc”. É possível encontrar o arquivo facilmente em qualquer recôndito da internet e, claro, nem precisamos te ensinar como fazê-lo. Mas a discussão aqui é outra. Neste caso, trata-se do que se chama comumente no mercado de “cópia de serviço”. Uma cópia de trabalho em baixa resolução, produzida para servir como guia para uma das empresas que vão ajudar na produção de um filme/série. Neste caso, estamos falando da Drei Marc, renomada empresa carioca de dublagem e legendagem, responsável por nacionalizar os episódios do bom doutor para o nosso idioma.
Em um papo que tive a oportunidade de bater com o músico Pedro Mariano, na época da finada Revista Submarino, ele chegou a me confidenciar que achava, honestamente, que o vazamento se tratava de uma falha de segurança em algum lugar do processo entre a gravadora e a equipe de produção/replicação. Alguém teria interesse em, talvez, ganhar algum dinheiro com isso, diretamente das mãos da pirataria – em especial no que talvez dissesse respeito a badalados artistas pop. “Todo mundo quer ouvir o novo da Madonna. Então, de repente, alguém pode ganhar um por fora fazendo uma cópia simples e soltando por aí”. Pedro tem propriedade para falar, já que passou a vida inteira mergulhado no mercado fonográfico, como filho do lendário César Camargo Mariano e da não menos famosa Elis Regina, além de ser irmão da badalada Maria Rita e de João Marcelo Bôscoli – não por acaso, executivo de uma gravadora, a Trama.
Portanto, no caso do episódio vazado de Doctor Who, seria fácil jogar a culpa na Drei Marc. Certo? Mas a própria emissora original, a BBC, isenta a empresa de culpa e diz que tudo aconteceu graças a uma falha de segurança no servidor de arquivos da BBC Latin America, que deveria funcionar de maneira estritamente confidencial. Ou seja: alguém aproveitou a falha e conseguiu entrar num servidor da BBC, “roubando” arquivos que tinham sido disponibilizados para que os fornecedores da BBC trabalhassem a série. Teria sido, inclusive, a mesma falha que abriu as portas para que se tivesse acesso aos roteiros dos dois primeiros episódios desta temporada, que também podem ser facilmente encontrados pelos Whovian mais apressadinhos. “A BBC Worldwide faz um apelo às pessoas que estão com este material de não compartilhá-lo com o público para que todos possam apreciar a série como ela deveria ter estreado no dia 23 de agosto”, apela a BBC em sua página no Facebook.
Ouvido pelo JUDÃO, um profissional do mercado de home video nacional que preferiu manter o nome em sigilo afirmou que nem sempre estamos falando, no entanto, de acidentes. “É claro que todas estas facilidades digitais tornaram o processo mais rápido e até mais inteligente. Mas tenho receio que elas acabaram tornando mais fácil o trabalho das pessoas mal-intencionadas, além de abrir de vez as portas para a pirataria”, diz. Ele lembra áureos tempos analógicos nos quais a master – a gravação original – de um filme considerado importante e estratégico era transportada numa maleta trancada com senha, levada com requintes de qualquer boa trama de espionagem. Em alguns casos, com direito até à presença de seguranças.
Ainda segundo este profissional, que tem mais de vinte anos neste mercado, embora seja quase impossível ter evidências claras de que isso aconteceu, ele aposta que em alguns casos os vazamentos foram, sim, obra de má fé. E realizados por pessoas diretamente envolvidas no processo. “Não tenho dúvidas. Tem muita gente mal-intencionada por aí. E tem certas situações que simplesmente não dá pra explicar. Não tem jeito. Não teria forma de ver isso caindo na internet ou numa banquinha de pirateiro com tanta antecedência sem que alguém de dentro, que conhece o processo, arranjasse um jeito do material sair”, opina. “E pra isso acontecer, cara, só sendo muito sacana, não é mesmo?”.
Bom, respondendo ao questionamento do nosso entrevistado, logo acima, talvez até haja uma outra forma. A gente explica.
Além do tal episódio de Doctor Who, as últimas semanas ainda tiveram outros dois casos de vazamentos ligados ao mundinho nerd: os episódios-piloto das séries The Flash e Constantine, ambas baseadas em personagens da DC Comics. Assim como no caso da série da BBC, as versões digitais destes capítulos inaugurais de duas grandes apostas da editora no mundo da televisão que você encontra na internet são claramente cópias de serviço – talvez até do tipo das que são produzidas para que a imprensa possa assistir aos episódios antes de irem ao ar e assim resenhá-los.
Mas...e aqui está o pulo do gato...existe toda uma corrente de fãs e especialistas (inclua aí blogueiros de séries e mesmo alguns jornalistas do mercado de entretenimento, que preferem não dar esta opinião em voz alta) que acreditam que os dois pilotos foram vazados propositalmente. Basta uma busca simples na internet, basta uma visita a qualquer fórum de maníacos por cultura pop para perceber que esta tese está longe de ser uma voz clamando sozinha no deserto. Pode parecer loucura, um tiro no pé? Na verdade, nem tanto. Pode ser, isso sim, uma estratégia.
Seria uma forma de sentir a temperatura dos fãs, perceber como foi a sua aceitação a um produto muitos meses antes de sua estreia, permitindo que as devidas mudanças e correções de rota pudessem ser feitas no meio do caminho caso fosse necessário. Se foi este o caso, o pessoal do canal CW deve estar rindo à toa, porque é consenso praticamente geral que este piloto do Flash é simplesmente incrível. Os fãs inundaram as redes sociais de elogios. Não vamos entrar no mérito aqui porque ainda não é a hora, mas podemos dizer que adoramos o que vimos e eles estão no caminho certo. Não é o caso da NBC, que deve estar se descabelando com Constantine, um arremedo de Supernatural que não lembra em praticamente nada o mago sacana das HQs.
Aliás, lhes parece coincidência que, pouco menos de uma semana depois que o tal piloto vazou, a emissora anuncie que teremos mudanças no elenco principal da série, sumindo com a personagem que move a trama no piloto? Opinem vocês.
Claro, as empresas sempre vão negar – e tudo bem, estão mais do que no papel delas. Foi o caso, por exemplo, do que aconteceu com a Fox em 2008, quando o piloto de Fringe vazou na internet, exatos três meses antes de sua estreia. O arquivo que podia ser facilmente encontrado nos torrents da vida tinha qualidade altíssima, como se tivesse sido extraído de um DVD. “Na minha opinião, isso é a Fox vazando o episódio justamente para gerar buzz. Eu faria isso. Afinal, qual é o melhor lugar para gerar este tipo de buzz do que a internet?”, opinou um fã, à época, ouvido pela revista Wired.
Àqueles que acreditam que uma empresa jamais poderia realizar este tipo de atividade de propósito, defendendo veementemente que sessões-teste precisam de toda uma metodologia de controle via questionários, é bom que se saiba que, nas redes sociais, basta ter uma boa plataforma de monitoramento para obter resultados com métricas tão confiáveis quanto as de quaisquer pesquisas. Qualquer executivo fanático por números teria em mãos, rapidamente, um relatório quantitativo e qualitativo bom o suficiente para embasar qualquer decisão futura.
No Brasil, existe um caso bastante sintomático: o filme Tropa de Elite. Um verdadeiro blockbuster nacional, sucesso absoluto de bilheteria – e que teve uma cópia pirata circulando vorazmente nas bancas de DVDs do camelódromo mais próximo da sua casa, três meses antes da chegada da obra às salas de cinema, forçando a distribuidora a antecipar a data de estreia. Claro que, antes que o filme abrisse oficialmente em circuito nacional, era tudo uma incógnita – o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto, que presidia o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, afirmou que o caso era a prova de que a pirataria é “crime organizado”.
Mas quando a jornada do Capitão Nascimento (Wagner Moura) chegou aos cinemas, o filme já era uma febre, um hit, com os bordões do personagem sendo repetidos à exaustão. Impossível negar que se tratou de um êxito comercial monstruoso, uma bilheteria épica, tornando-se, no período, a maior arrecadação do cinema brasileiro em todos os tempos. Não demoraria até que surgissem as perguntas: será que não se tratou de uma estratégia de marketing? Uma jogada? E do tipo que funcionou brilhantemente? O diretor José Padilha sempre se apressou em desmantelar esta hipótese. “O Ibope mediu quantas pessoas acima dos 16 anos tinham assistido ao filme. O resultado ? 11 milhões viram Tropa antes da abertura nos cinemas. O instituto perguntou quantos iriam ao cinema e 6 milhões poderiam ter ido se não tivessem visto o longa”, disse ele, em entrevista à revista Rolling Stone, então fechando a conta. “Tropa de Elite fechou com 2, 5 milhões de espectadores nos cinemas”.
Em tempo: três funcionários da empresa Drei Marc (hey, já falamos sobre eles hoje, não é, crianças?) foram presos pouco depois, acusados de terem vazado o filme ao fazer cópias ilegais que seriam assistidas por integrantes da polícia e também por alguns membros do elenco.
Se Padilha acha a acusação absurda, é bom que se lembre que a estratégia de vazamento proposital é bastante comum no meio musical – o mesmo Metallica que outrora travou uma cruzada contra o software de compartilhamento de arquivos Napster incentivava, em plena década de 80, a troca de fitas-cassete de seus shows gravadas “ilegalmente” por seus fãs. Aqui no Brasil, diversos rappers já declararam abertamente que são gratos ao efeito que a pirataria teve sobre seus discos. “O ambulante que vende meus discos piratas funciona como uma rádio, que divulga minha música sem que eu receba nada em troca”, afirmou Mano Brown, dos Racionais MCs, na sua já lendária participação no programa Roda Viva. “Pirataria me dá notoriedade”. No caso da banda, mais de 1 milhão de cópias do disco Sobrevivendo no Inferno (que traz a sufocante música Diário de Um Detento) foram vendidas, sendo que as estimativas não-oficiais falam em mais de 300 mil cópias “alternativas”.
O mesmo fenômeno pode ser visto entre os artistas do chamado tecnobrega paraense. Uma de suas maiores expoentes, Gaby Amarantos, esteve presente na coletiva de imprensa de lançamento do Spotify, da qual o JUDÃO participou, e revelou: “É absolutamente cultural, da cena musical do Pará, disponibilizar a sua música para os camelôs”. Segundo ela, a intenção sempre é conseguir emplacar um sucesso com o “povão” e começar a ganhar dinheiro de verdade fazendo shows. “Em casos como este, não temos qualquer preocupação com o Sudeste. Queremos estourar por lá, no boca a boca”.