O álbum DAMN. deixou para trás um histórico de jazzistas e músicos clássicos premiados, tornando Kendrick Lamar não apenas o primeiro rapper a ser LAUREADO mas também o primeiro astro verdadeiramente POP da parte musica da seleta lista
Instituído em 1917, o Prêmio Pulitzer pode não ser lá tão conhecido por aqui mas as meras menções que a gente já ouviu sobre ele em filmes/séries e demais EXTRATOS da cultura pop já dão a entender claramente que estamos diante do Oscar do Jornalismo — seguindo aquela mania de dizer sempre que alguma premiação é “o Oscar” do seu segmento específico. Criada por Joseph J. Pulitzer, editor dos jornais St. Louis Post Dispatch e The New York World, a cobiçada LÁUREA surgiu como um complemento à faculdade de jornalismo que ajudara a fundar na Columbia University.
Desde então, a premiação anual tem 21 categorias, cujos vencedores selecionados por seus 102 jurados são anunciados sempre no mês de Abril. Este ano, obviamente, era de se esperar que assuntos como a influência da Rússia na eleição de 2016, a precária situação da Síria e, principalmente, as denúncias de assédio/violência sexual contra Harvey Weinstein que desencadearam um verdadeiro furacão em Hollywood estariam entre os premiados do mundo do jornalismo. Mas acontece que, o que muita gente não sabe, é que o Pulitzer não premia APENAS peças jornalísticas. Ele também entrega suas estatuetas (e um prêmio de US$ 15 Mil) dentro de diversas categorias em uma seção intitulada “Letters, Drama & Music”.
Tamos falando, basicamente, de literatura — com premiações específicas pra drama, ficção, publicação histórica, biografia, poesia — e, se você reparou no “music” ali, deve imaginar que música também. Tem gente que nem imagina que um dos prêmios mais prestigiados da cultura americana também homenageia os melhores nomes da música do ano anterior.
Mas só que, bom, pro Pulitzer desde SEMPRE eles eram egressos da música clássica ou então, mais recentemente, do jazz (a partir de 1997, com Wynton Marsalis). Erudito, sabe? Música pop, nem pensar, não importava o que diabos estivesse acontecendo de revolucionário ao seu redor. Até 2018. Quando Kendrick Lamar e o seu fabuloso DAMN. chegaram pra fazer história.
Mais uma vez.
O músico da icônica cidade californiana de Compton, que vem sendo chamado — com toda justiça — por alguns especialistas de “o maior rapper vivo da atualidade”, concorria com outros dois finalistas: Quartet, do pianista clássico americano Michael Gilbertson, e Sound From the Bench, no qual Ted Hearne comanda quatro peças com as vozes do coro de câmara The Crossing, da Filadélfia.
Neste último disco, aliás, já estava um pouco clara a intenção do time de jurados do Pulitzer: Hearne é, apesar de um músico clássico, alguém com uma forte voz social. Tanto é que o tal álbum, com direito a percussão e guitarras elétricas, se divide em canções sobre privilégios raciais, um governo cheio de segredos e a venda do estado para as grandes corporações. Interessante.
Mas aí entrou Lamar na jogada. O mesmo cantor, compositor e produtor que, do alto de seus 31 anos, teve as manhas de ser esnobado pelo Grammy, em teoria a maior premiação da música, portanto sua área, nada menos do que TRÊS vezes. Em 2014, com Good Kid, M.A.A.D City, que não chegou a ganhar nem o gramofone de melhor álbum de rap (perdendo pro Macklemore que... bom, deixa pra lá) e saiu de mãos abanando; em 2016, quando o brilhante To Pimp a Butterfly, talvez um dos grandes discos da década, foi derrotado como álbum do ano pelo 1989 da Taylor Swift; e este ano, vejam vocês, quando DAMN. ficou pra trás de 24K Magic, do Bruno Mars (que ainda conseguiu, sabe-se lá como, bater Childish Gambino e Jay-Z, pasmem).
Agora chega o Pulitzer e, com ele, justiça poética, podemos dizer. “Uma coleção de músicas virtuosas unificada por sua autenticidade vernacular e dinamismo rítmico que oferece vinhetas comoventes que capturam a complexidade da vida afro-americana moderna”, é como descreve o próprio site do prêmio.
“Foi o momento certo”, afirmou, em entrevista ao New York Times, Dana Canedy, administradora atual do Pulitzer. “Estamos muito orgulhosos desta escolha. Isso significa que o júri e o conselho de jurados fizeram o que se esperava deles — deram o Prêmio Pulitzer ao melhor trabalho. Ele joga uma luz completamente nova sobre o hip-hop”.
Ela conta ainda que a decisão final foi unânime, embora David Hajdu, um dos jurados e crítico musical da revista semanal The Nation, afirme que mais de 100 lançamentos diferentes foram considerados, inclusive algumas peças de música clássica que bebiam de alguma forma da fonte do hip-hop. “Isso nos levou a uma discussão sobre como o rap tem seu valor como música propriamente dita e não apenas como um recurso em um campo musical que as instituições tradicionais reconheceriam mais amplamente como sério ou legítimo”. Verdade. E não por acaso, o Washington Post festeja a vitória de Kendrick dizendo não só que ele mereceu, mas também que “o rap é o tipo de música mais significativo dos nossos tempos”.
Entre os jurados — que incluíam a violinista Regina Carter; um dos coordenadores do programa de comissionamento do Met Opera, Paul Cremo; o professor de inglês e estudos afro-americanos da Columbia, Farah Jasmine Griffin; e o compositor David Lang — alguns conheciam um pouco mais de hip-hop, outros menos. Mas quando o álbum DAMN., complexo, complicado, diverso, cheio de camadas, sensível, incendiário, que é ao mesmo tempo político, social e sexual, veio à tona, não teve discussão. “Quando todos ouviram, rolou literalmente zero divergência”.
Claro que rolou uma polêmica no mundinho da música clássica — que, por si só, a gente pode chamar tranquilamente de “underground”, já que é algo que fala para um nicho muito específico e que, de certa forma, luta por reconhecimento correndo por fora do mainstream. E aí vem um sujeito que dominou as paradas de sucesso, que vendeu 3,5 milhões de discos, que é rap mas também é nitidamente pop, e arrebata a chance dos eruditos... Bom, pode ser que alguns maestros tenham ficado putos com isso, que tenham se rebelado contra o tal “aspecto comercial” do Pulitzer. Mas nem todos.
“O trabalho deste disco é tão sofisticado e experimental quanto poderia ser qualquer tipo de música”, afirmou Hearne, aquele lá de cima, que perdeu pro Lamar, a quem fez questão de chamar de um dos “maiores compositores americanos da atualidade”. E diz mais: “a ideia de que não poderia ser considerado porque não é música clássica ou experimental não faz qualquer sentido”.
O executivo Terrence Henderson, mais conhecido como Punch, um dos principais nomes da gravadora pela qual Kendrick lança seus álbuns, a Top Dawg Entertainment, celebrou fazendo um desabafo no Twitter: “não quero ouvir ninguém falar com nada menos do que respeito em suas bocas por Kendrick Lamar”.
Lamar é, antes de tudo, um baita contador de histórias. Alguém que sabe transformar em arte, em ritmo e poesia, em versos, a realidade que está ao seu redor. E no caso dos EUA, assim como em certo país do lado de baixo do Equador, a situação é claustrofóbica, um cenário cinzento, violento, com pouca esperança principalmente pra quem tem a cor de pele que os velhos brancos que estão no poder consideram como sendo “errada”. Não haveria lugar melhor para ele do que no Pulitzer, portanto? Por que, afinal de contas, ele também não está, a seu modo, retratando o mundo e denunciando as mazelas da sociedade? O rap, o bom rap, o rap de atitude, em sua linguagem falado, não é apenas POEDIA, mas também uma espécie de “jornalismo musical”?
Mas é claro que é.
Aliás, cá entre nós, até que demorou. Porque em um cenário musical que já teve nomes como N.W.A. e Public Enemy, só pra citar alguns dentre os muitos que foram verdadeiras metralhadoras giratórias fazendo seus próprios estilos de jornalismo musical, levou mesmo uma cara pro Pulitzer sacar que o rap existia.
Enfim, OK, eles o fizeram. E não poderia ter sido com um exemplar mais apropriado de ÓTIMA música. Aliás, de música ABSOLUTAMENTE necessária nos dias de hoje.
E, vamos lá, que o Grammy se foda, não é mesmo? ;)
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