Segunda temporada da série vira o personagem principal do avesso, tornando-se totalmente fiel aos gibis sem precisar ter fidelidade nenhuma
SPOILER! Atualmente, sabe-se lá como, eu assisto à maioria das adaptações de quadrinhos pra TV disponíveis. Mas se você me perguntar não apenas qual é a minha favorita mas também aquela pela qual eu largaria sem pensar duas vezes qualquer uma das outras, vou te dizer que é Legion. Justamente a mais complexa e menos óbvia de todas elas, que mais exige concentração, que você esteja no clima. E aquela cuja recompensa pra tudo isso é uma história poderosa e primorosa baseada num personagem coadjuvante dos X-Men.
Nesta segunda temporada, o que Noah Hawley faz é continuar a construção nada linear de David Haller, um dos mutantes mais poderosos do planeta, caminhando em direção a uma fidelidade tão absurda do personagem que você chega a se questionar em qual gibi ele está se baseando. O mais incrível é que a resposta imediata é “nenhum”.
Sabe quando a DC deu total liberdade pro Grant Morrison pegar a Patrulha do Destino ou o Homem-Animal e reformular como bem entendesse pra Vertigo? Ou quem sabe o Peter Milligan com Shade, o Homem-Mutável? Eles foram lá, mergulharam nas histórias clássicas, encontraram a ESSÊNCIA e construíram algo completamente novo. Pois é justamente isso que Hawley está fazendo com o Legião.
Sim, sim, Legião, pela primeira vez chamado desta forma na série. O filho de um Professor Xavier nunca mencionado mas somente sugerido. O jovem cheio de problemas da primeira temporada que finalmente conseguiu arrancar o demônio que vivia dentro de sua cabeça desde a infância, um parasita, um Senhor das Sombras que transformou sua juventude num inferno, mas que continuou atormentado sua existência agora do lado de fora, um Amahl Farouk brilhantemente vivido por Navid Negahban, cuja consciência domina outros corpos enquanto ele busca o seu próprio.
Só que com a música alçada ao papel de protagonista (o que eles fazem com Behind Blue Eyes, do The Who, no season finale, é magnífico), entre divinas lutas que na real são verdadeiros musicais, disputadas na pista de dança e tudo, algo vai mudando lentamente. O objetivo dos personagens, em especial do protagonista, vai aos poucos se distorcendo. E você começa a perceber que aquele David de quem você só conseguia sentir pena na temporada anterior por enxergá-lo como um joguete de uma criatura ancestral, na verdade tem algo a mais batendo dentro de sua cabeça.
De maneira sutil, usando uma aparentemente bizarra navegação entre passado e futuro, num triângulo amoroso esquisito entre a Syd de hoje e a Syd de amanhã, descobrimos que David é um homem doente. DE VERDADE. Um sujeito que criou e acreditou numa imagem de si mesmo, uma imagem de “homem do bem”, mas um sujeito que também se recusa a aceitar que precisa de ajuda, cuja mente é fraturada não apenas porque um verme mental percorria seus pensamentos, cujo cérebro enfim começa a ouvir vozes. Exatamente como nos gibis. E que, em certo momento, enfim manifesta as outras personalidades que vão forçá-lo a fazer coisas que ele nunca achou que fosse capaz. Ou nunca acreditou.
Senhoras e senhores, a grande ameaça para o futuro da humanidade, aquela que só o Senhor das Sombras teria poder para deter, é o próprio David Haller. O Legião. Que chega, inclusive, a aparecer numa cena breve com o visual típico dos quadrinhos, cabelão pra cima e tudo. O Legião que, nos gibis, tem seu momento de vilão, que muda a realidade, que viaja no tempo e cria a Era de Apocalipse.
Não que isso seja um segredo a ser revelado só no último episódio, até porque a situação vai se desenhando aos poucos, sem exageros, sem atropelos. Você que tá assistindo obviamente já sacou. No maravilhoso episódio 6, batizado de Chapter 14, as muitas versões alternativas de David que conhecemos já deixam isso claro como água. Só não vê quem não quer. Como o próprio David.
Mas o foda de Legion é a experiência. Não é O QUE vai acontecer. Mas COMO isso vai rolar. E sim, COMO isso vai mexer contigo. Porque mexe. E vai te deixar tenso. E, por vezes, até cansado de tão chacoalhado. Tudo com economia de personagens (perceba como é enxuto o elenco principal) e sem a necessidade de milhões de tramas paralelas.
Esta não é uma série de respostas fáceis ou imediatas. Aliás, nem tudo precisa de resposta. Melanie, a chefona da temporada anterior, andava sumida até quase o final da temporada, esquecida. Mas logo seu papel ficou claríssimo. “Ah mas o que aconteceu com o Ptonomy, perdido no mainframe?”. Isso pouco importa agora.
Assim como também não adianta ficar perguntando quem caralhos é Fukyama, metido debaixo daquele capacete de palha? Foda-se, você não precisa desta resposta agora. Ou talvez nem precise dela em momento algum de uma temporada que, UFA AINDA BEM, é curta e toma o tempo que precisa pra se focar naquilo que realmente faz sentido. Porque faz. Mesmo que você só descubra lá na frente.
Além de Farouk, que é odioso e assustador de um jeito tão cool, falando em três línguas ao mesmo tempo, que você mal sabe o que pensar daquele que deveria ser o antagonista, outra ótima notícia em termos de elenco é que a força caótica da natureza conhecida como Lenny ganha um novo corpo, garantindo altíssimas doses de uma Aubrey Plaza cada vez mais inspirada em cena. Dá pra confiar nela? NUNCA. Ela mesma deixa isso claro. Mas, ainda assim, o David de alguma forma confia. E a gente também.
Apesar de uma abertura brilhante e de um encerramento que garante uma terceira temporada da qual simplesmente não se sabe o que esperar (e isso é DIVINO), o season finale é certeiro e tem seu momento crucial em uma única frase, aparentemente simples, mas que é a que quebra a casca do ovo e vira a chave pro cérebro de David. Porque, manipulada pelo Senhor das Sombras, Syd começa a questionar, em plena luta contra o malvadão, se o seu amado é realmente quem diz ser. Ou quem ele mesmo pensa que é.
Apontando uma arma pro futuro Legião, ela quer garantir que um futuro que nem aconteceu ainda e pode nem acontecer jamais aconteça. Ele nega tudo e, quando tem a chance, em desespero, manipula os pensamentos da garota. Quase como um doping mental. Pra que ela esqueça tudo, esqueça estas teorias e continue amando o cara.
De volta pra casa, os dois se reencontram, os dois se beijam, os dois transam. Numa cena pra lá de estranha, de incômoda. Não tem violência, não é explícita, é bastante sutil. Mas no olhar da Syd, tem algo errado. Até que, graças a um ESTRATAGEMA de Farouk, ela recobra a memória. Sente nojo, sente pena, não sabe direito o que sente. “Você me drogou. E fez sexo comigo”.
Sim, foi usando o poder da mente. Sim, foi usando a sua forma astral ao invés do corpo físico. E sim, foi achando que estava fazendo a coisa certa, achando que foi “por amor”. Mas sim, ELE A ESTUPROU. Sacou?
POW, na sua cara. Você, espectador, passa a nitidamente olhar pra ele como um vilão, ainda que ele não seja só isso, mas agora TAMBÉM possa ser isso. Um anjo cheio de demônios, como eu e você, como qualquer um aí do seu lado, precisando de ajuda.
E a angústia que esta cena dá, quando algo se torce dentro dele, CARALHO, é de foder. Porque ele percebe o que fez. Que realmente precisa estender a mão e pedir socorro. Que realmente é um sujeito perigoso, muito mais do que admitiria. Mas tem outro alguém dentro dele dizendo que não. Que ele não deve desculpas a ninguém. Que ele é um DEUS. E ele desaparece, levando Lenny consigo.
Se David for de fato o GRANDE VILÃO da terceira temporada, talvez estejamos diante de um dos antagonistas mais complexos e cheios de camadas de qualquer adaptação de gibis pra qualquer mídia EVER. Ver todo o restante do elenco CONTRA ele seria brilhante. Mas, ainda que não seja, tenho certeza que qualquer que seja a viagem que Noah Hawley tenha pra nós, ela vai ser surpreendente, cheia de som e fúria, repleta de percalços e, ainda assim, linda e inesquecível.
Por mais séries como Legion, por favor.