Nunca vou esquecer a primeira (e única) vez que o encontrei pessoalmente: chapéu de cowboy e cigarro no canto da boca, servido com uma lata de Coca-Cola e uma garrafa de Jack Daniel’s
Born to lose, live to win. A frase, que se tornou praticamente um slogan para o Motörhead, também serve para descrever a vida de um dos seus fundadores, o icônico Lemmy – alcunha do inglês Ian Fraiser Kilmister, que infelizmente morreu nesta segunda-feira (28), quatro dias depois de ter completado 70 anos de idade, vítima de câncer. De acordo com o comunicado oficial da banda no Facebook, o músico descobriu a doença no último dia 26 — e morreu em casa, junto da família e em frente a um videogame trazido diretamente do Rainbow Bar and Grill, que Lemmy sempre frequentava em West Hollywood.
A saúde de Lemmy vinha preocupando os fãs nos últimos meses. Por mais que o músico se recusasse a abandonar os palcos, gerando inclusive uma discussão a respeito da hora certa de parar, não foram raras as vezes em que ele abandonou shows pela metade, com dificuldade de completar as músicas – ou, em alguns casos, nem sequer chegou a aparecer (como aconteceu aqui no mesmo no Brasil, durante a edição 2015 do Monsters of Rock). Os motivos eram variados: problemas respiratórios, intestinais, um mero mal-estar. Mas a verdade é que a aparência debilitada do cantor e baixista já entregava que algo de muito mais grave estava acontecendo...
Me lembro claramente da primeira e única vez em que encontrei Lemmy pessoalmente. Foi durante uma coletiva de imprensa realizada no finado Via Funchal, no qual a banda realizaria uma apresentação horas depois. O ano era 2004. A mesa estava montada diante dos jornalistas com Phil Campbell (guitarrista) sentado de um lado, Mikkey Dee (baterista) do outro e uma cadeira reservada ao centro. E nada do Lemmy chegar.
Quando ele apareceu, quase 20 minutos depois, foi um alvoroço. De chapéu de cowboy e cigarro no canto da boca, foi prontamente servido com uma lata de Coca-Cola e uma garrafa de Jack Daniel’s. Sua poderosa voz rouca dominou o papo. Olhar perdido, contava suas histórias e respondia às questões sempre sorrindo, mas sem a necessidade de formalidade, sem olhos nos olhos, às vezes sem completar as frases. Com um jeitão clássico de “foda-se”, parecia estar se sentindo num boteco. E matou a garrafa inteira de Jack e metade de um maço de cigarros antes mesmo que a gente chegasse a uma hora de conversa.
“Este cara é foda”, sussurrou um colega ao meu lado, falando consigo mesmo, com sorriso satisfeito no rosto. “Um dia ainda vou aprender a beber como ele”. Lemmy se tornou uma espécie de representação viva dos excessos do rock, da resistência quase sobre-humana dos rockstars clássicos à tríade sexo-drogas-rock’n’roll. Viveu a vida ao máximo, sem pisar no freio, em ritmo acelerado.
Sem se apegar a relacionamentos, sem criar vínculos familiares, incorporou o “lobo solitário” e acabou criando ao seu redor uma série de mitos e polêmicas, tanto quanto aqueles que circundam as vidas de Ozzy, Iggy Pop e Keith Richards, outros caras tidos como “imortais” apesar de todo o álcool e nicotina. Da vida como roadie e fornecedor de drogas para Jimi Hendrix à excêntrica coleção de itens do exército nazista (“Eu gosto da estética, não dos ideais deles. Que o culpa eu tenho se as roupas deles eram mais legais?”, disse certa vez), construiu o status de ícone. Não eram as raras as vezes em que era tratado como “Deus” pelos fãs.
Quando Lemmy entrou naquela sala, em 2004, ficou claro o quanto este aspecto de “mito” era verdadeiro. A respiração de todos os presentes, fossem eles jornalistas da grande imprensa ou aqueles especializados em heavy metal, pareceu ficar em suspenso quando o cara chegou, com um carisma que pareceu ocupar todos os lugares e não apenas aquela simbólica cadeira que estava, até então, vazia. Tinha uma aura que transcendia a coisa do “ah, é o cantor daquela banda”. Lemmy parecia ser bem mais. E, mesmo musicalmente, não apenas no mundo dos mitos e lendas, ele também era.
No Hawkwind, fez história com uma sonoridade psicodélica e espacial, abordando temas de fantasia e ficção científica, trabalhando ao lado do escritor Michael Moorcock. Mas foi no Motörhead que se tornou de vez um astro tão improvável quanto influente.
Longe do visual do vocalista galã e com uma voz suja e carregada, falava muito bem com todos os públicos. Os headbangers, claro, são fanáticos por ele — o som é pesado e corpulento o suficiente para bater cabeça. Há quem diga que o Motörhead foi o principal influenciador para o surgimento do thrash metal, por exemplo. Mas o próprio Lemmy, mesmo com seus uniformes de couro e uma estética de tachas e espinhos, preferia evitar o rótulo de “heavy metal”. Ele preferia chamar o Motörhead de “rock”. E ponto.
Até porque a banda também conversava muito bem com a velocidade e espirito crítico do punk, por exemplo, mais do que com as incursões clássicas que grandes nomes do metal europeu acabam fazendo. Não são raras as vezes em que conseguimos ouvir nas faixas do Motörhead umas pitadas de blues aqui e ali, em especial na vibração do baixo que ele também tocava com maestria. Com o ótimo projeto paralelo The Head Cat, Lemmy brincou com o rockabilly e as sonoridades do rock clássico dos anos 50. Era um sujeito de muitas influências e estava honestamente cagando e andando pro que iam achar dele, para o livro de regras que grande fatia dos fãs de metaaAaaAAaaAal querem que você siga. De verdade, assim como na sua vida pessoal, tudo que queria era fazer o que tinha vontade.
Além do recente Bad Magic, 22º álbum de estúdio do Motörhead, Lemmy poderá ser visto no filme mudo Gutterdammerung, uma espécie de musical pesado sem falas que chega em 2016 sobre o qual a gente já tratou aqui, aliás.
Born to lose, live to win. Lemmy venceu. E conquistou o direito de entrar no Olimpo do rock, chutando a porta da frente. E como dizia o título do documentário que o Channel 4 fez a respeito do power trio: Live Fast, Die Old. No fim, foi exatamente o que ele fez. E tenho absolutamente certeza, sem qualquer tipo de arrependimento.
No mundo do rock, Lemmy é o tipo de filho da puta que vai fazer uma falta do caralho.
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