Reed Hastings fez uma apresentação em São Paulo com praticamente nenhuma novidade – mas, no pouco que disse (ou até no que não disse), podemos tentar entender os motivos da atenção dada ao Brasil neste começo de 2017
A fala é pausada, clara. Cada frase é extremamente calculada, pinçada a partir de inúmeros documentos cuidadosamente estudados e preparados. Ele é Reed Hastings, CEO do Netflix, que se apresentou para a imprensa na última terça (7) em um hotel em São Paulo. No discurso, recordou o belo começo da empresa e os desafios que vem pela frente mas, no conteúdo – tirando o anúncio da série de comédia brasileira Samantha!, ainda sem data e qualquer tipo de detalhe de elenco, direção e produção – não havia nenhuma novidade.
Hastings foi cuidadoso e político nas respostas que deu, inclusive quando o assunto envolvia o presidente dos EUA, Donald Trump. Não que ele esteja preocupado com o governo de lá, mas sim com o efeito negativo nas ações das companhias que viram alvo do presidente. “Netflix tem orgulho de ser uma das 100 empresas que entrou com um parecer jurídico contra a proibição de viajantes de países islâmicos do governo Trump. Isso é importante para nós porque muitas empresas no Vale do Silício, inclusive Netflix, têm empregados de todo o mundo. Temos iranianos, iraquianos [...]. Numa base moral, não acreditamos que certos países, e todos os indivíduos daqueles países, devam ser banidos dos Estados Unidos, que é um símbolo de abertura e integração”, mordeu o executivo, assoprando logo em seguida pra mostrar para os acionistas que tá tudo bem. “Mas o governo não afeta diretamente o Netflix. Logicamente afeta muito o mundo, mas não afeta nossas séries e filmes que compartilhamos em todo o planeta. A internet é a mesma de antes”.
“Quantas séries [estamos fazendo no Brasil]? 3% é muito popular por aqui e em todo o mundo, por isso resolvemos fazer uma segunda temporada. Essa é a nossa primeira grande série. A segunda é Samantha!, que acabamos de anunciar”. Minutos depois, questionado de uma terceira série, aquela baseada numa certa operação, ele completou a lista. “Vamos continuar a investir [no País]. Por isso estamos fazendo as originais, aqui, como 3%, Operação Lava Jato e Samantha!”.
O “esquecimento” talvez tenha sido o único ato falho do executivo, mas é de se entender: os originais são da alçada de Ted Sarandos, CCO da empresa, e a produção dirigida por José Padilha não teve novas informações desde o anúncio, em Abril do ano passado.
Agora, vamos pensar. São 10.359 km que separam São Paulo de Los Gatos, a sede tecnológica e corporativa do Netflix no Vale do Silício, onde fica a sala de Reed – posicionada no ponto mais alto do prédio e carinhosamente chamada de “Towering Inferno”. Por que, então, se importar em vir até aqui? Para anunciar um título que não diz nada, esquecer-se de uma série e ser questionado sobre o Trump? Hm, não.
Hastings é um executivo que não gosta de ficar isolado entre as suas próprias quatro paredes. Como ele mesmo disse, o “Brasil é um foguete” e muita gente no mercado daqui tem interesse no que Netflix está fazendo.
Incluindo concorrentes e, claro, o governo.
Não é segredo para ninguém que SBT, Record e RedeTV! visualizam no serviço de streaming uma forma de faturar uma grana a mais. A Simba, empresa formada pela união das três redes abertas, está em negociação para colocar mais conteúdo deles no Netflix, como informou o UOL no final do mês passado. Negociação essa que tem um setor específico – o de aquisições – mas, né, se o homem está aqui, é provável que tentaram também bater um papo com ele.
“Tem duas formas primárias para trabalhar com redes locais. Uma é licenciando programas para a segunda janela – ou seja, para entrar no catálogo um ano depois após ser exibido pela emissora por um ano. A outra são as produtoras, que nos oferecem de forma independente. Às vezes, elas são partes de conglomerados”, disse o executivo, sem citar ninguém. “Não tenho um comentário específico sobre outras redes, mas estamos muito abertos a licenciar conteúdo – e não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro”.
Pode parecer estranho repassar um conteúdo “velho” para terceiros, mas a estratégia pode garantir uns trocados pra estes canais, além de ajudar a plataforma de streaming a aumentar a diversidade de conteúdo – uma questão importante, principalmente depois que os grandes donos de conteúdo passaram a cobrar mais caro por suas produções e o investimento em originais se mostrar muito DISPENDIOSO.
A questão é: o quanto esses canais possuem, realmente, de conteúdo pra vender? O SBT, por exemplo, já comercializou novelas como Chiquititas e Carrossel. Os Dez Mandamentos, ao menos em sua “primeira temporada”, está completinha no serviço, assim como outras produções bíblicas da Record. No caso da RedeTV!, tenho dúvidas se Encrenca ou João Kleber Show teriam algum atrativo no streaming. Como Netflix diz sempre (e Reed repetiu) que não tem interesse por jornalismo e esportes, sobra, no máximo, programas antigos do Silvio Santos – e olhe lá.
Fica claro que o problema dos três canais não passa apenas por monetizar melhor o que produzem, mas produzirem com mais qualidade em maior volume, ampliando o público. Um desafio que Netflix também teve que superar. “Nós tentamos não ter apenas um gosto. Nós tentamos ter conteúdo para todo mundo”, disse o CEO. “Nós focamos na diversidade de vozes, e não em apenas um aspecto”.
Pra falar a verdade, durante todo o tempo, Reed Hastings nem sabia citar SBT, Record e RedeTV!. Mas os olhos do executivo brilhavam toda vez que ele mencionava o nome de outra emissora, que ele sabe de cor. “A Globo é muito boa nisso [de fazer telenovelas]”, disse, ao ser questionado sobre o formato número um por aqui. “Uma das vantagens do crescimento do Netflix é que todas as outras companhias estão melhorando. A qualidade da programação da Globo, as minisséries, essas coisas novas, é fantástica. É uma competição forte para nós, que faz Netflix melhor – e, mais importante, traz mais para os consumidores daqui”.
Nas entrelinhas, é possível ler que Hastings admira e teme a emissora carioca. Admira porque Netflix apenas financia as produções originais, feitas por terceiros, seguindo um modelo mais tradicional de TV nos EUA. Não faz nem algumas semanas que a empresa inaugurou uma nova sede em Hollywood, agora sim com um estúdio próprio. Enquanto isso, o Projac (que, agora, resolveram chamar de Estúdios Globo) produz conteúdo em escala industrial com grande qualidade técnica – a qualidade artística eventualmente você pode até colocar em dúvida.
Agora, Hastings teme a Globo porque ele sabe que nunca terá esse conteúdo que ele tanto elogia e que colocá-lo na web não é uma dificuldade. “A internet permite que qualquer um participe”, comentou. “Quanto custa lançar um app para Android? Só precisa de uma pessoa. Agora você pode fazer uma rede de TV se tiver um app e algo para dizer... Você pode até fazer no YouTube, por ainda menos, para começar a ter uma voz. O que estamos vendo é a abertura para novas vozes, novos talentos, que nunca poderíamos ver antes”.
A rede dos Marinho já fez essa parte, com o Globo Play. O que Reed não sabe é que o inferno não é na torre em Los Gatos, mas no eixo Rio-São Paulo. Os conteúdos disponíveis na plataforma carioca podem ser contados nos dedos, a maioria restritos ao que está no ar no momento e com a adição de um punhado de programas dos últimos anos. Os spin-offs exclusivos para o streaming ainda são poucos. Já o arquivo – que é, por exemplo, o trunfo do canal pago Viva – continua na prateleira de algum depósito em Jacarepaguá.
Aliás, falando nisso, o app global poderia ter também todo o arquivo dos canais Globosat, sejam elas produções próprias ou financiadas pelo grupo, fazendo um VOD mais competitivo. Mas esse não parece ser o caso. Em novembro do ano passado, Alberto Pecegueiro, diretor-geral da Globosat, disse que a empresa lançaria o streaming de seus canais independentemente da assinatura de pacotes de TV, começando pelo Telecine Play. Ou seja, o grupo pensa em se dividir em várias alternativas, esperando que o consumidor assine cada “canal” separadamente.
Pra um gigante como é o Netflix, com estimados seis milhões de assinantes brasileiros (é mais que a Sky e a receita local já bate a do SBT), uma pulverização dessas vindo de quem poderia ser gigante é um alívio.
No entanto, dois assuntos são de vital interesse para Reed Hastings, realmente justificando uma viagem até aqui – e apenas um deles foi tangenciado durante os cerca de 40 minutos de apresentação e Q&A.
Desde que chegou ao país, a empresa americana tem sido acusada de não pagar os mesmos tributos que outras companhias da área de entretenimento – se aproveitando da lentidão de governos e de regulamentações arcaicas. E aí, no ano passado, foi aprovada a lei que institui o ISS no streaming. “Geralmente, nós pagamos os impostos que o governo local cobra, e esse custo chega aos consumidores, todos vocês, e repassamos para o governo do país. Nós somos uma entidade local, pagando impostos aqui no Brasil, desde o começo, há cinco anos. Então desde que as regras sejam aplicadas igualmente em todos, nós, nossos concorrentes, cabe aos brasileiros e ao governo decidir quais impostos devem ser cobrados e nós apenas nos adequamos as leis”.
Apesar do discurso de “seu imposto, seu custo”, o americano sabe que um aumento de preço sempre impacta em queda de assinantes. Sem falar que há gente no mercado que não vê a cobrança do ISS como suficiente. Ou seja...
Cota de conteúdo brasileiro, como já aconteceu com a TV paga há alguns anos, também é um assunto capaz de fazer Hastings arrancar os cabelos cuidadosamente penteados. O debate nem entrou na pauta do evento, mas ele vem crescendo nos bastidores. Ganha força a tese para a criação de cotas em volume de filmes e séries nacionais ou até cotas financeiras, já que é difícil quantificar o quanto existe de conteúdo no Netflix, mas seria mais fácil exigir que eles gastassem um valor em dinheiro em produções nacionais.
É, talvez esse tema seja sério o suficiente para fazer Reed Hastings viajar mais de 10 mil quilômetros para dar uma espiadinha no seu “foguete”...