Programa da MTV que trazia animações ~adultas icônicas como Beavis and Butt-Head e Æon Flux, foi um dos pedaços mais transgressores da história da cultura pop
Quando a gente fala num bloco de programação voltado para ~adultos especialmente formado por desenhos animados experimentais/alternativos que beiram o non-sense e não têm receio de apelar pra violência e praquele humor mais sombrio, é inevitável que, na cabecinha dos xóvens de 20 e poucos anos, pinte uma menção automática ao Adult Swim, do Cartoon Network. Justíssimo. Mas pra quem já passou dos 30, tudo isso era sinônimo de ooooutra coisa, de uma das muitas doses de loucura que a MTV topou bancar no início dos anos 90, dando total liberdade pra que animadores independentes mostrassem seu trabalho em uma programação provocativa e atrevidíssima pra época, que atendia pelo nome de Liquid Television.
Pra quem conhece e tá querendo rever AND também pra quem nunca ouviu falar e deveria conhecer, eis a ótima notícia: em mais um pedaço de seu inestimável trabalho de preservação da nossa cultura pop, os caras do Internet Archive subiram os 22 episódios de 30 minutos das três temporadas originais da Liquid Television, exibidos entre junho de 1991 e março de 1994 (e desconsiderando aqui a mal-ajambrada tentativa de revival que rolou em 2014). Tamos falando não apenas dos capítulos inteiros com todas as séries animadas e live-action reunidas mas TAMBÉM com os intervalos comerciais, incluindo propagandas da época e vinhetas clássicas da MTV. Em resumo: um programão.
Embora fosse exibido na telinha da MTV americana, o Liquid Television é aquele tipo de coisa que surgiu da cabeça de um inglês, Japhet Asher, que na época trampava pra produtora Colossal Pictures, levou a ideia pra MTV e os caras toparam no ato.
O resultado foi um monte de séries animadas com episódios que tinham duração de no máximo 10 minutos — como o trio de detetives The Specialists, que entre outros inimigos, combatiam uma conspiração alienígena de poodles; o cara que se tornou o melhor amigo de sua casa toda 3D em The Adventures of Thomas and Nardo; ou ainda a jornada futurista de Brad Dharma numa versão cyberpunk de Timbuktu (sério).
Misture nesta piração aí coisas como segmentos animados inspirados na antologia Raw, mantida por ninguém mais do que Art Spiegelman entre 1980 e 1991, e também a deliciosa Winter Steele, um programa com bonecos, uma mistura de Muppets e Sons of Anarchy na qual uma motoqueira sai em busca do paradeiro de seu antigo amigo/crush/rival da época do orfanato, e a mistura tá prontíssima.
Além de tudo isso, a importância de Liquid Television pra cultura pop também está em ter servido como plataforma de lançamento para duas séries que os fãs abraçaram tanto que acabaram ganhando seu próprio espaço, em produções próprias pra MTV. A primeira delas foi Æon Flux, ficção científica criada pelo animador Peter Chung que, depois de uma série de curtas na LTV, teve direito a uma temporada completa de 10 episódios, exibidos com toda a pompa e circunstância, ajudando a popularizar um visual mais ágil, moderno, dinâmico e europeu para os personagens.
A história de uma misteriosa e ousada assassina (com impressionantes habilidades acrobáticas) vestida de couro em um mundo futurista e distópico, tentando se infiltrar no território de Bregna, liderado por seu ex-amante Trevor Goodchild, foi parar no cinema hollywoodiano em 2005, com Charlize Theron no papel principal, em uma adaptação que muita gente prefere esquecer.
Os outros representantes famosos da LTV, que ganharam vida própria a partir de sua aparição na segunda temporada, foram os dois moleques que a gente aprendeu a chamar de Beavis and Butt-Head, aqueles mesmos que entre 1993 e 1997, se tornaram praticamente sinônimo de MTV.
Mas acho que estes dois, frutos da cabeça doentia de Mike Judge, dispensam apresentações, né?
No fim, pouquíssimo deste material da Liquid Television acabou saindo em VHS / DVD / Blu-ray da forma que deveria, exatamente como foi exibido originalmente na TV, justamente porque a parada era exibida na MTV, um canal com liberdade total para a utilização das canções mais variadas possíveis. Só que quando isso vai pra outros formatos, claro, as músicas precisavam ser licenciadas e negociadas praticamente uma a uma, em alguns casos inviabilizando o lançamento. Basta lembrar da quantidade de clipes que Beavis e Butt-Head ficavam assistindo na TV enquanto disparavam uma metralhadora de bosta (temos certeza de que Kip Winger se lembra MUITO BEM).
Embora, oficialmente, o último episódio desta fase clássica da Liquid Television tenha ido ao ar no dia 1o de janeiro de 1995, o segmento gerou uma espécie de spinoff um ano antes, o igualmente interessante MTV’s Oddities, que trazia duas séries animadas dignas de nota: The Head, criação de Eric Fogel sobre um jovem cujo crânio assume certa dia proporções gigantescas, apenas para que ele pudesse descobrir que lá dentro agora mora um pequeno ET roxo chamado Roy; e a lindíssima adaptação para a TV de The Maxx, o maravilhoso gibi de Sam Kieth publicado na Image Comics. Ambas valem ser vistas porque carregam, genuinamente, o DNA da LTV.
Mais do que a nostalgia pela nostalgia, ter a chance de ver a íntegra da Liquid Television é uma daquelas verdadeiras aulas de cultura pop, pra quem quer saber mais sobre o passado e, principalmente, entender o que tá rolando no presente.
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