O verdadeiro Varg pode ter ficado puto, mas Jonas Akerlund acertou em cheio na costura das verdades, das mentiras e dos fatos. Os três lados da história.
Olha só, a regra valeu para o premiado Ray, com o Jamie Foxx. E também para o filme do Doors com o Val Kilmer, por exemplo. Ou para Straight Outta Compton, sobre o NWA. Vale para o Bohemian Rhapsody, DORAVANTE denonimado “o filme do Queen”. Vai com certeza valer para Rocketman, que em algum momento com certeza deve se tornar “o filme do Elton John”, e igualmente pro The Dirt, a biografia do Mötley Crüe que o Netflix lança no final do mês de Março. E vale também, ora ora, para este Lords of Chaos. A regra é clara: antes de qualquer coisa, a história de uma banda e/ou artista do mundo da música, por mais real que seja, precisa ser UM BOM FILME.
Pode parecer meio óbvio, mas nem todo mundo acredita neste mantra, de que um filme precisa ser bom cinema antes de ser considerado qualquer outra parada. Se para fazer a narrativa fluir melhor for preciso recortar apenas um pedaço da história, que seja. Se for preciso criar um personagem no meio do caminho, tudo bem. Se houver a necessidade de mesclar determinados eventos num só, tá ok. Sim, é uma peça de ficção baseada numa história real então, é óbvio, espera-se que ela não distorça os eventos. Mas não dá, por outro lado, esperar que se trate de um documentário. A ideia é bem outra.
Da mesma forma que a gente sempre defende, no caso das adaptações de livros/gibis/games que o produto final, na telona, é outro e que o importante é mais do que ser ultrafiel a cada quadro mas sim ser fiel em espírito, o mesmo vale para uma cinebiografia. Ela deve fazer jus à história original mas não tem necessidade de contá-la nos mínimos detalhes. E neste caso, por mais que os integrantes da cena norueguesa metálica do chamado Círculo Interno roam até os cotovelos de raiva com esse Lords of Chaos, o cineasta Jonas Akerlund acertou em cheio: tá tudo lá. Como ele mesmo descreve, as verdades, as mentiras e os fatos. Os três lados da história.
Mais do que isso, está lá principalmente A DESCONSTRUÇÃO. Akerlund passou longe do maior perigo de um trabalho como este, que seria a reverência. Tratar os ídolos como ÍDOLOS de verdade. Como deuses. Como suas personas de palco, sem humanizá-los, sem tirá-los de sua mística tão meticulosamente construída. Varg Vikernes pode ameaçar de processo, pode querer contar a sua visão, dizer que só quem esteve envolvido sabe o que aconteceu. Tanto faz. Se você conhece minimamente a história do Mayhem, os meandros do séquito que se formou em torno da Helvete, mas não entende Varg e Euronymous como seres míticos e místicos, acima do bem e do mal, o retrato no geral é bem autêntico.
E se você NÃO conhece, digamos que Lords of Chaos te conta a história lindamente, a ponto de te deixar curioso o suficiente para procurar conhecer um pouco mais. Porque, por baixo de todo o couro, dos cabelos compridos, das tachinhas, do corpse paint na cara, o filme te conta a história de PESSOAS.
Pessoas em busca de algo para preencher o vazio de suas vidas com experiências cada vez mais extremas. Pessoas que sofrem de paranoia e depressão. Pessoas que em algum momento, como diz um personagem do filme, queriam sair mas não encontravam a porta. Pessoas que se sentem deslocadas, não se encaixam, e resolvem que vão criar um mundo especial ao seu redor. Como eu e você. E talvez seja isso que irrita tanto parte dos músicos envolvidos e mesmo uma parte dos fãs. Porque a porra do pedestal caiu.
Lords of Chaos, acima de tudo, te conta a história de PESSOAS
Dando um pouco de contexto aqui: Lords of Chaos é inspirado numa história real, em torno do surgimento de uma criativa porém polêmica cena de black metal na Noruega, entre os anos de 1990 e 1993. Influenciados pelo culto a bandas com atração pelo sobrenatural e pelo IMAGÉTICO demoníaco como Black Sabbath, Mercyful Fate e Venom, os futuros músicos começaram a formar uma espécie de “círculo interno” ao redor de uma pequena revendedora de artigos especializados na cidade de Oslo. O nome, sugestivo, era Helvete (“inferno”, em norueguês) e o dono era um jovem chamado Øystein Aarseth, muito mais conhecido pelo nome de Euronymous. Satanismo era tema recorrente, assim como a crítica a todas as religiões e uma vontade absurda de chocar a sociedade como a conhecemos.
O tal círculo interno esteve ligado a uma série de eventos profanos e bizarros, a começar pelo suicídio de Per Yngve “Dead” Ohlin, primeiro vocalista do Mayhem, a banda fundada por Euronymous – e um dos primeiros a usar a característica maquiagem macabra conhecida como corpse paint. Nos anos seguintes, os caras estiveram ligados a toda uma série de incêndios criminosos em igrejas históricas da Noruega. O ápice da história, no entanto, viria quando o próprio Euronymous acabou brutalmente morto a facadas por Varg Vikernes, que andava por aí com o codinome Count Grishnackh. Protegido de Euronymous, que o ajudou a lançar o projeto solo Burzum, rapidamente Vikernes iniciou uma rivalidade com o amigo, num embate pela posição de poder do grupo.
Apesar do peso de toda esta trama, Akerlund já começa de maneira maravilhosa ao colocar o próprio Euronymous como o narrador onisciente da história, tirando a camada de seriedade que alguns gêneros extremos do metal insistem em usar como capa para rosnar de volta ao mundo que vive no redor. Lords of Chaos tem muito de humor, mas sabe ser dramático o suficiente quando precisa, em especial quando lida com a banalidade da violência que eles insistem em construir ao seu redor.
“Eu vim a este mundo para espalhar caos e destruição”, explica Øystein (Rory Culkin), um jovem que, minutos antes, nos apresentou à cinza e conservadora sociedade norueguesa na qual vive. Num mundo sem grandes surpresas e novidades, com belíssimos cenários rurais que ajudam a enfatizar ainda mais o buraco na alma desta molecada, qualquer um deles acabaria sendo forçado a trabalhar na pesca ou então nas estações de extração de petróleo.
Mas o adolescente que se torna fã de heavy metal do tipo mais pesado encontra um caminho para fazer o que todos os adolescentes fazem: contestar. Querendo ser cada vez mais brutais, mais sangrentos, mais extremos do que seus próprios ídolos, eles flertam com imagens de morte e perversão para chacoalhar o status quo. Querem se tornar monstros, a encarnação do mal. Querem ser únicos e especiais. Ainda que mamãe e papai banquem as gravações de seus discos e o aluguel de suas lojas de discos.
Lords of Chaos é crítico e ácido para todos os lados. Porque mostra estes moleques cheios de dúvidas e incertezas não como gênios que seguiam um presságio divino ou que tinham uma missão sagrada na Terra, uma “causa”, uma retomada de suas raízes nórdicas contra a invasão cristã. Eles comem no fast food, enchem a cara, fazem merda, são zoados pelas irmãs mais novas, sentem tesão pela garota linda na festa, farreiam. O lado demoníaco é apenas um deles. E um lado bem menos luciferiano e muito mais humano, que infelizmente poderia acometer qualquer um ao redor. Deles e de nós. Os monstros aqui são preconceituosos, hipócritas, traidores. O inferno é aqui mesmo.
Numa história que gira basicamente em torno da amizade e respeito que se tornam ódio e competitividade, era de se esperar que os dois protagonistas precisassem ser certeiros — e são mesmo. Rory ajuda a construir um Euronymous que é muito menos o líder ferrenho de uma entidade satânica e bem mais um rebelde em busca de um objetivo. É alguém por quem se sente certa dose de empatia, até. Há quem defenda que a garota que se torna sua namorada, a fotógrafa Ann-Marit, jamais existiu. Assim como a cena icônica envolvendo seus cabelos compridos no final do filme. Pode até ser. Mas são elementos que, metaforicamente, funcionam perfeitamente.
A garota se torna, mais do que um romance, na verdade um espelho, sua conexão com uma humanidade que ele se sente perdendo. A cena de sexo entre os dois depois de uma sessão de fotos, o corpse paint borrado na cara... É tudo de uma delicadeza ímpar. É graças a ela que ele passa a entender o quanto sofreu com a perda de Dead, que teriam existido lágrimas e amargura depois das fotos que tirou, antes de chamar a polícia, e que se tornariam a capa do disco ao vivo Dawn of the Black Hearts, de 1995. Lenda? Realidade? Tanto faz. Neste tipo de história, tudo pode ser um pouco mentira mesmo.
E aí temos Emory Cohen, o Homer de The OA, uma escalação simplesmente maravilhosa para viver Varg Vikernes — curiosamente, a voz que se coloca de maneira mais intensa CONTRA o filme. A transformação que se passa do começo para o final do filme, o moleque genial, mas ainda tímido, que é zoado por ter um patch dos Scorpions no casaco e depois se torna uma espécie de mente criminosa brilhante... Está praticamente tudo no olhar de Emory, que sabe dosar na medida certa um quê de ridículo com uma dose de fúria que chega a assustar. Ele é de fato o antagonista. O vilão. Mas... ele também não foi o vilão da vida real?
A casa toda branca e impecável, no contraste com as cavernas sujas nas quais seus colegas vivem, tire os sapatos antes de entrar, o tabuleiro de xadrez, os itens nazistas espalhados pela sala. Tudo ajuda a construir a personalidade do mesmo cara que, ao longo dos anos, ainda na cadeia, deu dezenas de entrevistas e se manifestou de todas as formas possíveis via cartas, posts em blogs e afins. Em todos estes momentos, o retrato que se construiu era exatamente o que se vê no filme. A tumultuada conversa de Varg com o jornalista na sala de estar, querendo compor um retrato maníaco para colocar o Círculo Interno sob os holofotes, é maravilhosa. Um dos pontos altos do filme.
Especialista na linguagem de videoclipes, Akerlund, vindo da Suécia que era justamente o antro dos principais adversários dos headbangers noruegueses na época, sabe dosar bem em Lords of Chaos a edição acelerada geralmente combinada com as canções áridas e cavalares do Mayhem, com um quê de doçura, geralmente entremeado pelas canções compostas pelos islandeses do Sigur Rós. Até mesmo a trilha, como bem se esperava, ajuda a trazer esta dualidade que por vezes parece estranha, bizarra, difícil de engolir. Mas é a vida real. Ainda que não seja exatamente a realidade.
Honestamente, pra mim, qualquer filme/disco/livro/peça de teatro que funcione como uma provocação à visão que se criou do tal metal tradicional, o metal “verdadeiro”, aquele que quer ser nicho, que não aceita quem venha de fora, que constrói a imagem de que é algo para “poucos e bons”, eu já começo apoiando 200% na largada. E se isso resulta num bom filme direto, reto e finamente produzido como Lords of Chaos, maluco, aí você me pega assinando embaixo.
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