No final de semana do Dia da Mulher, meninas se reúnem em São Paulo para o 1o Encontro de Mulheres RPGistas, uma resposta a uma série de comentários que revoltaram parte da comunidade de mestre e jogadores mas que, infelizmente, são bem mais comuns do que se imagina
Lembro como se fosse hoje, eu tinha lá os meus 14, 15 anos, era o meu ápice em matéria de jogatina RPGística, toda semana rolava religiosamente alguma coisa. Sexta-feira à noite era dia sagrado pra mim e para aqueles caras na saudosa Baixada Santista. Balada? Que nada. O lance era preencher as planilhas, rolar os dados e matar monstros imaginários como se não houvesse amanhã.
Até que um amigo em comum de todos nós resolveu experimentar aquela história de RPG... e trouxe a irmã mais velha junto. Fodeu. Imediatamente, nos tornamos um bando de retardados. Ainda mais porque, durante algumas semanas, ela se tornou presença constante na mesa de jogo. Me lembrando da situação hoje, parecia que éramos um bando de Cebolinhas e Cascões babando pela Xabéu, irmão mais velha do Xaveco. Mas apostando num comportamento bem menos inocente do que nos gibis do Seu Mauricio.
Ela tinha todos os tipos de regalias durante o jogo – e tanto nós jogadores quanto o mestre insistíamos em colocá-la em situações sugestivas, românticas ou eróticas, de maneira que um de nós pudesse, usando os personagens, nos aproximar dela, fazer algum tipo de graça, tentar soltar alguma cantada imbecil. Numa cena, um dos “heróis” tentou até agarrar a personagem dela à força. Em um dado momento, obviamente, ela se incomodou. E nunca mais apareceu. Durou até demais. Nós, é claro, sacamos. E admitimos uns para os outros que tínhamos passado DEMAIS dos limites. Confesso, com pesar, que me envergonho demais ao lembrar disso. E me sinto um babaca total e completo.
Tão babaca quanto uma coleção de cretinos que, pessoalmente ou protegidos pela segurança anônima dos fóruns/grupos de discussão/comunidades, ainda continuam defendendo que este é um jogo de homens, que não há espaço para meninas em papéis que não sejam apenas figurativos, como pedaços de carne que devem ser disputados a tapa pelos machos-alfa travestidos de magos, guerreiros e elfos. Sim, pode parecer exagero, mas é isso mesmo. Tanto é que, no meio do mês de fevereiro, uma postagem em um grupo de jogadores de RPG no Facebook desencadeou uma verdadeira polêmica. “Quem disse que RPG e mulher não combinam?” Na foto, uma senhorita de decotão com um pingente na forma de um dado de 20 lados entre os seios. A discussão fez até com que os criadores do RPG nacional Tormenta (Marcelo Cassaro, Rogério Saladino e J.M. Trevisan) se manifestassem publicamente contra este tipo de postura, criando seus próprios memes pra disseminar por aí.
“Por algum motivo alheio à minha compreensão, em todos os ramos nerds (RPG, quadrinhos, games etc), alguns homens tendem a acreditar que uma mulher só entra nesse universo pra impressionar um homem e ganhar adoradores, e não porque ela realmente gosta e entende do assunto”, opina a ilustradora Danielle RB, mais conhecida pela sua alcunha de cosplayer Dandi LePirate. Jogadora de RPG há cerca de 14 anos, começou a se interessar pelo assunto conforme via as mesas de jogo no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo. Atualmente, tem conseguido manter a média de uma a duas sessões de jogo por mês, alternando entre os sistemas Mutantes e Mal Feitores e Dungeons and Dragons. Mas se hoje ela se sente satisfeita com o grupo que formou, conta que nem sempre foi assim. “Sim, já fui beneficiada por mestres por ser mulher, já tive personagens convenientemente colocadas em situação de nudez para uso de humor na mesa, e já passei por sessões em que o objetivo se perdia para uma competição por atenção de minha personagem”.
Dandi acredita que justamente por isso logo assumiu a mesa como mestra, pra coordenar as aventuras à sua própria maneira. “Com o passar dos anos, obtive menos foco em meus decotes e mais foco nas minhas ações, e como os jogadores ganharam maturidade com a idade, o mundo ganhou também, e hoje posso afirmar que raramente passo por tais situações, até porque formei mesas nas quais fico muito mais à vontade e em posições nas quais imponho mais limites”.
A auditora Viviane Silva, que também ultrapassa uma década de dedicação aos jogos de interpretação, é outra que sabe o que é manter limites. “Estou aqui pra jogar, não force a barra, e para esclarecer meu preço é bem mais alto que itens mágicos ou refrigerantes comprados na loja”, disse ela a um mestre e um dos jogadores que a bajulavam dentro e fora do jogo em uma mesa da qual começou a participar. “O mestre não deu prosseguimento nas tentativas, mas o jogador continuou até ser retirado da mesa por outros players devido a esta conduta”. Experiente, com passagens por diferentes sistemas (de D&D a GURPS e o quase onipresente Vampiro: A Máscara), geralmente Viviane acabava sendo a única mulher em suas sessões de jogo.
Chegou a ganhar um campeonato de Magic: The Gathering por WO (“o jogador não aceitava jogar contra mulher, pois para ele eu havia sido treinada por um homem para estar ali”) e, por muito pouco, escapou até de uma agressão física quando resolveu mestrar um jogo e sentiu que estava sendo desrespeitada por dois jogadores apenas por ser mulher, sendo submetida a pegadinhas que atrapalhavam a narrativa. “Aguentei por um bom tempo até criar uma aventura na qual as fichas dos dois sofreram por não ‘manjar’ do sistema como deveriam”, conta. Um dos “amigos” morreu depois de uma falha de dados. “Eu consegui esquivar de um murro na cara, até hoje não sei como, pois este jogador foi pra cima de mim assim que morreu”. Metaforicamente falando, claro. Sobre a morte, não sobre o soco.
As situações que a Dandi e a Viviane relataram pra gente estão entre os principais motivos para o surgimento do 1o Encontro das Mulheres RPGistas, evento cuja primeira edição acontece na Terra Magic, em São Paulo, neste domingo – não por acaso, 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Na real, tudo começou com aquele post que a gente mencionou láááááááááááá em cima, lembra? O do “quem disse que RPG e mulher não combinam?”. Eva Morrissey, blogueira do Livro dos Espelhos, conta que em minutos a revolta dela e de um monte de jogadoras (e, graças a Odin, alguns jogadores também) deu origem a uma carta aberta, de repúdio. Só que veio também a fagulha de algo maior. “Enquanto estávamos construindo coletivamente a carta, surgiu a ideia de um evento, e mais mãos dispostas a ajudar foram surgindo. Foi um momento em que olhamos para o lado e reconhecemos que todas nós estávamos na mesma situação, então era a hora de formarmos um grupo pra enfrentar essa aventura de frente”, conta.
Eva, com mais de duas décadas de experiência em grupos de RPG, já passou ela mesma por este tipo de situação, fosse como jogadora ou como mestra. “Um jogador achou que seria divertido tentar brincar de arremessar dados no decote da minha blusa enquanto eu mestrava. Interrompi a mesa e o convidei a se retirar. Felizmente tive o apoio, inclusive na indignação, do restante da mesa”, revela. Justamente por isso, acredita que estimular o diálogo sobre essas questões e dar espaço para mulheres que querem falar de RPG em um ambiente seguro e inclusivo é fundamental. “A recepção da mulherada de tudo quanto é idade está sendo maravilhosa. De meninas de 12, 13 anos, colaborando mesmo que com ideias, por serem de outros estados, a mães que vão com a criançada, com o marido, pra conversar e pra jogar RPG”.
Os homens também estão se manifestando com relação ao evento. “Temos os caras bacanas e com quem queremos jogar sempre, que no lugar de fazer escândalo, nos acusar de algo ou de tentar tomar a dianteira dando ‘ideias para melhorar nosso evento’, simplesmente perguntam ‘onde posso ajudar?’ e tiram dúvidas sobre as mesas, sobre como não ser babaca com as mulheres nas mesas, ajudam a divulgar”. Ficamos felizes, aqui no JUDÃO, de saber que eles estão por aí. Só que... “E, bem, tem os tipos de que queremos distância. Recebi algumas ameaças anônimas bastante pesadas com alto teor misógino e racista simplesmente por estar ajudando a organizar o evento. Mas ainda acredito que as pessoas decentes são maioria”, confessa ela.
“Nós, mulheres, não queremos a tolerância nem permissão dos homens para fazer parte do espaço do RPG”, diz a pedagoga Camila Gamino, atualmente parada no hobby mas já organizando um grupo de RPG apenas de meninas, para o qual pretende mestrar o sistema Tormenta. “Queremos participar de um espaço que também é nosso por direito, sem ter medo, sem nos sentirmos inferiorizadas ou como pedaços de carne nova. Não cabe aos homens do RPG decidir se vamos ou não fazer parte disto, cabe à nós mesmas. Não estamos pedindo permissão, estamos avisando que nós também fazemos parte deste universo, e vamos desfrutar dele quer queiram ou não”.
Falou, tá falado. E tome falha crítica para quem insistir no contrário.