Marcelo Yuka é o responsável por um dos álbuns que você precisa ouvir em 2017 | JUDAO.com.br

Com Canções para Depois do Ódio, seu primeiro disco solo, o homem que era o coração criativo d’O Rappa faz a trilha sonora para um sonhado momento de paz – mas que sabe criticar por baixo de suas camadas eletrônicas

Demorou. Mas demorou bastante. Porque, apesar deste disco ter sido GESTADO ao longo dos últimos cinco anos, já se vão mais de quinze desde que a vida de Marcelo Yuka virou do avesso, o que acabou fazendo com que ele decidisse sair d’O Rappa, a banda na qual suas composições ditavam aquele direcionamento de forte teor social dos primeiros trabalhos. Teve o trampo com o F.UR.T.O. (Frente Urbana de Trabalhos Organizados) em 2005, o disco de estreia Sangueaudiência? Sim. Mas a pegada ali inevitavelmente lembrava um pouco o próprio Rappa, era rock com um tempero reggae, com uma veia hip hop.

Com o recém-lançado Canções para Depois do Ódio, a intenção é totalmente diferente. Esqueça os trabalhos anteriores por completo. Aqui, Yuka faz questão de deixar a sua assinatura pessoal com uma sonoridade que é muito mais MPB do que rock. Mas uma MPB eletrônica e madura, com dubs criando camadas delicadas que se sobrepõem à batidas tribais, à percussão inspirada na música negra. A sua importância, no entanto, está nas letras, afiadíssimas, que mostram que o compositor não perdeu a forma. Como o título, forte e cheio de significado, já entrega, não é um disco de protesto, mas pra DEPOIS do protesto.

Coincidência ou não, o fato é que Canções para Depois do Ódio veio na hora certa. Porque ele abre um ano repleto de incertezas, nebuloso no que diz respeito aos ÂMBITOS político e social. Mas o próprio Yuka deixa claro, desde a primeira faixa, que este é um trabalho para um momento de paz. É uma coleção de canções para quem mantém a esperança em um amanhã melhor, apesar dos resultados das eleições ao redor do mundo, apesar das manobras e golpes num certo país latino-americano. Apesar das manchetes, apesar das panelas, apesar da indignação seletiva. Apesar do fascismo. É um disco que fala, antes de tudo, sobre o amor, que sempre vence no final. Ou, pelo menos, que a gente tem que acreditar que vence. A gente PRECISA acreditar.

Yuka não é o cantor, o vocalista, o frontman. Está por trás das composições, das letras e, claro, das batidas, remetendo ao seu tempo como baterista. Justamente por isso, recorre a um timaço de colaboradores, formado por nomes como Céu, Cibelle, Seu Jorge, Black Alien, Barbara Mendes e principalmente Bukassa Kabengele, cantor brasileiro de origem congolesa, ex-integrante da banda de soul & funk Skowa e a Máfia.

Basta ouvir a entrega dele na linda e tocante Assim é a Água, “sem culpa, sem medo, sem rancor ou raiva”, que está logo na abertura dos trabalhos, para entender o quão bem ele assume o papel de “voz” de Yuka. Ou então no delicioso primeiro single, Movimento da Massa, com seu toque de samba-raiz do morro, que fala sobre futebol, sobre o Maracanã, sobre curtir o futebol com seu time ganhando ou perdendo, uma espécie de herdeira mais amadurecida e delicada de Eu Quero Ver Gol – mas que, em certo momento da letra, retoma os movimentos sociais que vão pra ruas protestar.

Canções para Depois do Ódio é um disco que fala sobre esperança, mas está longe de tentar tapar o sol com a peneira e, obviamente, tem muito a dizer. Não é um Rage Against The Machine, não chega com dois pés no peito, mas sabe bem entregar a sua dose de indignação, de crítica. Fala sobre um futuro desejado sem deixar de enxergar o passado – no caso, o hoje. “Precisamos neste momento de mais barulho do que bombas, tanto fora quanto dentro”, diz Cibelle, ao som da batida quase baião de Agora neste Momento.

Já em Confusão, talvez a letra mais foda do disco, Barbara Mendes opta por uma cantoria meio repente e que naturalmente convida um riff de guitarra (ou algo do gênero) lá pelo meio do caminho, enquanto diz sem papas na língua que “o povo confunde justiça com vingança, o idiota confunde poder com arrogância”. Te lembra alguém? ;)

Isso sem falar em Myto, faixa que é quase um soul eletrônico, repleta de groove, que versa sobre a humanidade reinterpretando a sua própria mitologia, mas que lembra quase que imediatamente um C E R T O sujeito alçado ao status de mito por seus seguidores, um “homem que repousa em seu próprio absurdo”. Faz muito sentido.

Por se tratar de um disco de Marcelo Yuka, claro, tudo que é percussão também se destaca. A bateria – ou o que seria equivalente a ela, já que este não é um disco de rock comum ou, vamos lá, nem é mesmo um disco de rock – é protagonista. Em Dali, ele chega a arriscar até, na reta final, uma batida funk. Mas não funk James Brown, que fique claro, mas sim funk do tipo Baile de Favela mesmo. A periferia pede passagem.

Canções para Depois do Ódio é um disco que fala sobre esperança, mas está longe de tentar tapar o sol com a peneira e, obviamente, tem muito a dizer

A Carga tem um instrumental percussivo que remete aos pontos e cantigas da umbanda e do candomblé, coisa que ele explora fortemente em Cortejo Milenar, sobre carnavais e orixás, sobre ancestrais, sobre alegria, com uma bela vibração de baixo pra acompanhar.

E por mais que estas muitas canções para depois do ódio tenham espaço até para Algo Mais Explícito, definitivamente a mais roqueira do álbum, que libera uma guitarra nervosa ao falar da entrada dos fundos que é reservada para nós enquanto eles estão lá em cima, brindando ao nosso fracasso, o resultado final é bem mais doce e delicado do que se esperaria de alguém com o passado de Yuka. Uma surpresa deliciosa. Ainda bem.

Canções para Depois do Ódio é um álbum que se resume muito bem em A Tempestade, música sobre como os olhos do pescador lamentam o que está por vir, a tormenta que vai dobrar os coqueiros e revoltar o mar. Mas, em certo ponto da letra, o personagem admite: “adoro as tempestades, principalmente aquelas que sua força anuncia que logo se vão”. E completa: “Adoro admirar transformações inevitáveis”.

A transformação está chegando. Esperamos todos, Yuka incluído, que seja para melhor. Para construir um mundo mais bonito para depois de tanto ódio.