Quando Mark Millar fez o Homem-Aranha estrelar um thriller de ação | JUDAO.com.br

Passagem do escocês, dentro do selo Marvel Knights, trouxe uma abordagem diferente pros roteiros do Cabeça de Teia, com foco na adrenalina, em cenas de ação e num Peter Parker PISTOLAÇO da vida

Antes da Marvel tentar se reinventar para o século XX com a versão Ultimate dos seus heróis, a editora tentou uma outra saída marota pra sacudir alguns de seus títulos e, em 1998, criou o selo Marvel Knights.

Basicamente, a ideia era pegar quatro revistas (Pantera Negra, Justiceiro, Demolidor e Inumanos) e entregar nas mãos de Joe Quesada e Jimmy Palmiotti, na época sócios da Event Comics. Assim mesmo, toma que o filho é teu, liberdade total, escolham os roteiristas e artistas e mandem bala, a gente só banca e coloca na rua. O resultado? Um PUTA sucesso de vendas, que reapresentou o Homem Sem Medo (inicialmente escrito por um certo Kevin Smith) e seu parça Frank Castle (sob a batuta de Garth Ennis e Steve Dillon, a dupla de Preacher) pra um novo público.

Quesada cresceu em prestígio, se tornou editor-chefe da porra toda, mas isso é OUTRA história. O fato aqui é que estas histórias, mais livres da cronologia opressora da Casa das Ideias, um pouco mais sombrias e violentas, passaram a ser interessantes válvulas de escape e tubo de ensaio para personagens maiores. Bastava aplicar o selo Marvel Knights em cima e, pronto, tava liberado, mesmo sem a Event Comics por trás.

Nesse esquema, não demorou muito para que o Homem-Aranha, até então a galinha dos ovos de ouro da Marvel Comics, também fizesse parte do EXPERIMENTO.

Aconteceu em 2004 e, originalmente, o roteirista deveria ser outro. A Marvel queria Kevin Smith na jogada, repetindo numa série regular a dobradinha com o casal Terry & Rachel Dodson que tinha fluido tão bem na minissérie Homem-Aranha & Gata Negra: O Mal no Coração dos Homens — na época, porém, o sujeito tava ocupadíssimo com sua carreira cinematográfica e não conseguiu se comprometer. E foi aí que entrou em cena um escritor escocês que, graças ao trabalho com Os Supremos, também conhecido como “Os Vingadores Ultimate”, caiu nas graças da Marvel. Mark Millar.

Naquele momento, o Escalador de Paredes estrelava nada menos do que três revistas diferentes — Amazing Spider-Man, Peter Parker: Spider-Man e, claro, a reinterpretação Ultimate de Brian Michael Bendis. Portanto, Millar tinha o desafio de oferecer algo diferente. “Nós tínhamos Bendis escrevendo uma revista para todas as idades, Paul Jenkins com o tipo de história mais tradicional e J.Michael Straczynski fazendo a melhor sequência de Amazing desde a época de Stan Lee”, afirmou Millar na época, em comunicado oficial, dando uma exagerada básica no trabalho do JMS. “No entanto, eu percebi que havia uma grande lacuna no mercado e este é exatamente o tipo de revista do Homem-Aranha que eu sempre quis ler. Minha fase precisava de realismo e eu queria que esta série tivesse um certo nível de sofisticação nas ideias e na narrativa. O selo Knights me permite pensar num público adolescente descolado e mais velho, nada de rude ou grosseiro”.

O primeiro arco de histórias de Millar, Caído Entre os Mortos, é fácil um dos momentos mais brilhantes das HQs do aracnídeo nos anos 2000, escrito com um tesão que transparece a cada página. “Me senti possuído assim que comecei a escrever. Trabalhei cinco horas além do meu habitual, escrevendo o roteiro do primeiro ano da revista na primeira noite. Foi uma destas ocasiões em que você faria o seu trabalho de graça!”. É, sim, e o pior é que a gente acredita. ;)

Tudo começa quando o Homem-Aranha finalmente manda o Duende Verde pra cadeia. É justamente neste momento que um inimigo desconhecido, que parece saber a identidade secreta do herói, sequestra a Tia May (que, sim, já descobriu a carreira dupla do sobrinho e tenta conviver bem com isso). Obviamente que Peter, agora professor de ciências no ensino fundamental, desconfia de Norman Osborn, que sabe quem ele é desde um certo episódio numa ponte envolvendo Gwen Stacy e vai pressionar o camarada na prisão mesmo — recebendo em troca apenas um cinismo maquiavélico que forma um dos muitos diálogos absolutamente brilhantes da série.

Transtornado, sem uma única pista, o Teioso sempre leve e bem-humorado enfia as piadas no bolso e começa a ficar nervoso de um jeito que nem mesmo a sua amada esposa Mary Jane parece ter visto antes.

Esgotado, mal-humorado, tenso, o Homem-Aranha se mete no que parece ser uma espécie de thriller de ação de tons acinzentados, sem tempo pra respirar enquanto cruza o caminho de alguns de seus maiores antagonistas e apanha como nunca. Assim que ele cruza o caminho do Electro, por exemplo, vemos o vilão se mostrar ameaçador DE VERDADE, usando seus poderes de maneira inteligente e mortal. “Você nunca imaginou que eu fosse tão perigoso, né?”, provoca Dillon, antes de eletrocutar o adversário de décadas e quase matá-lo. Ainda pintam na jogada um Abutre movido por um objetivo BEM maior do que apenas grana, um Doutor Octopus em um estranho acesso de fúria descontrolada e o Coruja se comportando como um gângster genuíno, do tipo que tortura sem piedade quem resolver pisar no seu calo.

O traço limpo e realista dos Dodson privilegia não apenas a agilidade dos personagens — e, vamos lá, pra quem desenha um gibi do Homem-Aranha, com toda aquela coisa acrobática, isso é crucial — mas também o ambiente urbano (o nível de detalhes da cidade de Nova York é impressionante) e intensidade emocional das expressões faciais, que tornam ainda mais vívido o sorriso maquiavélico de Osborn ou o ciúmes no olhar de MJ ao ver seu marido discutindo com Felicia Hardy, a Gata Negra, a ex-namorada que pinta pra salvar o dia e deixa um puta climão no ar.

No final, temos o já icônico leilão que Eddie Brock promove, com a ajuda do Consertador, pra se livrar do simbionte que o transforma no Venom. A comunidade de supervilões tenta a todo custo arrematar a geleca alienígena mas o bicho é comprado pelos Fortunato, família de mafiosos que quer dar algum tipo de futuro para o seu herdeiro fracote, Angelo. Mas o elo entre eles dura pouco e, como a gente bem sabe, o simbionte acaba se fundindo a ninguém menos do que Mac Gargan, aka Escorpião, numa associação que durou uns bons anos no Universo Marvel.

A passagem de Millar pelo título duraria 12 números, sendo logo depois substituído por Reginald Hudlin e, na sequência, por Roberto Aguirre-Sacasa. Foi aí que Marvel Knights Spider-Man acabou sendo rebatizado como The Sensational Spider-Man — sendo então cancelado em 2007, depois do número 41, para garantir que a revista principal do carinha, The Amazing Spider-Man, pudesse ser publicada três vezes ao mês pós-saga One More Day.

Ao reler mais uma vez este grande momento de Mark Millar à frente do Homem-Aranha, a gente até consegue esquecer o constrangimento por Trouble, série em cinco números escrita por ele e publicada pelo selo “maduro” da Marvel, a Epic Comics, em 2003. Era a história de quatro amigos, May, Ben, Mary e Richard, cujos nomes devem lhe soar bastante familiares como os tios e os pais de um menino chamado Peter. Com o objetivo de falar sobre gravidez na adolescência, o gibi terminava sugerindo que, na verdade, quem tinha ficado grávida era a May, que entregou o moleque pra Mary cuidar. Sacou...?

Se até a Marvel, que ama um retcon, esqueceu esta bagaça e a desconsiderou completamente em termos PRÁTICOS, quem somos nós pra nos focar nisso, né mesmo? Fiquemos com Caído Entre os Mortos mesmo que já tá pra lá de ótimo. <3