Marvel Comics querendo ficar tranquilinha em cima do muro | JUDAO.com.br

Os recentes cancelamentos de títulos com foco em personagens mais diversos são apenas a ponta do iceberg — ou, no caso, de um posicionamento bem do bunda-mole que a Casa das Ideias tá construindo

A cultura pop, assim como qualquer coisa nesta vida, é feita de bem mais do que apenas manchetes bombásticas. Às vezes, pra entender melhor o que tá rolando de fato, você precisa deixar de ser preguiçoso e ler as entrelinhas. Vejam, por exemplo, o caso do tal Marvel Create Your Own, nova atração digital anunciada recentemente pela Marvel Comics na qual você usa cenários pré-definidos, escolhe seus personagens, muda lá suas poses, acrescenta uns balões, itens como armas, onomatopéias e, que rufem os tambores, cria a sua própria história com os heróis e vilões da editora.

Bem cá entre nós... GRANDES BOSTAS. Porque isso aí tá longe de ser a maior novidade da face da Terra: basta lembrar do aparentemente finado Máquina de Quadrinhos, que permitia fazer rigorosamente a mesma coisa com a Turma da Mônica. E isso em 2009!

Pois bem. O que deixou a galera em POLVOROSA com este tal Create Your Own foram os termos de uso da parada. Que diz, em muitas e complicadas palavras do jargão juridiquês, que tudo que for produzido e publicado ali é de propriedade deles. E que a Casa das Ideias pode “distribuir, redistribuir, licenciar, copiar, comentar, modificar, adaptar, traduzir e criar trabalhos derivados a partir de”. Isso significa que, se a tua história do Homem-Aranha, o seu fanfic, ficar muito legal, a Marvel pode ir lá e transformar numa história oficial do herói no seu gibi mensal e não te pagar um mísero centavo. Uau. Que surpreendente. É uma megacorporação. Cêis juram que esperavam algo diferente num serviço que usa essencialmente as muitas marcas registradas da editora?

O grande ponto a se destacar, no entanto, não é este aí. Entrelinhas, lembra? O que surpreende, pero no mucho, é a longa lista de “NÃO CARA, ISSO CÊ NÃO PODE FAZER!”. Tamos falando de “conteúdo que possa assustar ou incomodar crianças ou seus pais”, “palavrões”, “obscenidade”, “sensacionalismo”, “morte”, “paródias da Marvel”, “referências a parques que não sejam os da Disney ou estúdios de cinema que não sejam afiliados com a Marvel”, “barulhos relacionados a funções corporais”, “imagens sugestivas” e o meu favorito, além do ponto no qual eu realmente queria chegar, “temas controversos ou temas sociais”.

Isso significa que a divisão de quadrinhos da Marvel está empreendendo um esforço coordenado em busca daquele lugar privilegiado que fica em cima do muro. Pra não enlouquecer os Comic Book Guys, aqueles que passaram os últimos anos PUTAÇOS da vida com a Thor, com o Falcão assumindo o papel do Capitão América, com a Riri Williams, com a Miss Marvel, com o Homem de Gelo abertamente gay, não apenas vamos evitar polêmicas: vamos evitar nos posicionar a qualquer custo.

E a gente diz isso assim, sem rodeios, porque não, esta não é uma ação isolada. Basta analisar outros movimentos que a Marvel vem empreendendo nos últimos meses. Por exemplo, a lista de solicitações da Marvel para o mês de Março, que mostra uma considerável leva de cancelamentos de títulos, que acontecem, verdade. São naturais, tanto lá quanto cá, em especial no que diz respeito às grandes editoras. Mas aqui tamos falando de gibis como Generation X (no qual a Jubileu treina uma nova leva de jovens mutantes), Gwenpool, Luke Cage, Iceman, Hawkeye (com Kate Bishop no papel principal) e America. Se você prestou um mínimo de atenção, vai sacar o que existe em comum entre eles.

Todos são HQs estreladas e/ou escritas AND desenhadas por minorias. Mulheres, gays, negros, o pacote completo. “É importante deixar claro aqui: o Hulk já foi cancelado. Os X-Men já foram cancelados. O Thor já foi cancelado”, afirmou o VP sênior e editor executivo da Marvel, Tom Brevoort, no Twitter. “Ser cancelado não é necessariamente o fim da história ou reflete o valor do trabalho”. Já o CCO Joe Quesada, também no MICROBLOG, abordou diretamente a questão da diversidade: “se um gibi encontra sua audiência ele vai se manter, não importando o gênero, etnicidade ou preferência/identificação sexual do criador. Vocês podem dizer que estamos surdos com relação a este assunto, mas nós publicamos estes gibis. No fim, no entanto, são vocês que decidem quem sobrevive”.

Claro que a galera não engoliu muito a explicação, e Quesada então continuou: “o que vocês não enxergam é que tem outro fã, tão apaixonado quanto você, do outro lado nos dizendo exatamente o oposto. Em que posição isso nos deixa?”. E completou: “nós queremos que os gibis funcionem”. Sei. Te entendemos.

O caso aqui, Mr.Quesada, é que em abril do ano passado a gente já tinha publicado uma matéria com um recado MUITO claro: a diversidade nunca é o problema. Porque, afinal, este caminho de muitos relançamentos e grandes sagas que mudam tudo de novo e de novo é desgastante. Entre Outubro de 2015 e Fevereiro de 2017, a Marvel relançou 104 séries de super-heróis. São 104 novas revistas, histórias, personagens em um ano e meio. Pensa nisso. Então... porra, claro que ninguém espera que uma Miss Marvel vá vender tanto quanto um Vingadores da vida. “Dificilmente você verá uma publicação segmentada como a mais vendida. O que mais vende são os blockbusters. Resultados da diversidade aparecem mais quando olhamos no todo”, a gente disse lá atrás. E dissemos mais:

Miss Marvel está com vendas menores nas comic shops, sim. A última edição ficou na casa dos quase 31 mil exemplares. Mas a revista historicamente vende bem no digital, que não tem números divulgados de forma constante, assim como nos encadernados – e aí inclui livrarias. Ou seja, fora dos canais comuns, dos nerds comuns. Sinal do problema? Talvez. Aliás, mesmo nas comic shops, o último encadernado da Miss Marvel, o volume 6, teve 3500 exemplares por lá, ficando em 13º lugar em vendas no mês de lançamento. Mais que Liga da Justiça, Justiceiro, Gavião Arqueiro e por aí vai. Mas o grosso dessas vendas, mesmo, acontece via Amazon e concorrentes

Ou seja: os hábitos de leitura e consumo mudaram, as plataformas mudaram. Por que continuar medindo o sucesso pelas mesmas métricas do século passado?

O questionamento também vem dos caras do Bleeding Cool. De acordo com o colunista Joe Glass, se fizermos uma comparação mês a mês entre os títulos cancelados e aqueles que sobreviveram, os números flutuam bastante. “Por exemplo, em outubro, comparando apenas números brutos. Luke Cage vendeu mais do que Old Man Logan e Daredevil. Em junho, o primeiro número de Iceman bateu o Demolidor também. Se estes títulos cancelados tão vendendo o mesmo ou um pouco melhor do que personagens clássicos da Marvel, por que eles foram cortados ao invés daqueles com personagens brancos, cis, hétero?”.

A Marvel pode ter todas as justificativas do mundo. Mas, para quem sabe olhar nas malditas das entrelinhas, tudo soa NO MÍNIMO estranho.

Agora, junte os termos de uso do Creat Your Own com estes cancelamentos certeiros e tempere com uma coisinha chamada Legacy. Que, esperneiem os cabeças da editora ou não, é uma clara tentativa de fazer um Rebirth, no mesmo esquema da DC Comics.

A gente já te contou aqui que, pós-Secret Empire, tão rolando estes especiais chamados Generations, cujo objetivo é construir o lance do LEGADO. No especial do Capitão América, por exemplo, Sam Wilson abre mão do escudo e do título de Capitão América, voltando a ser apenas o Falcão em seu gibi próprio. Para quem está acompanhando tudo que tá rolando na Casa das Ideias neste exato momento, lá fora, este foi apenas o primeiro de muitos passos para tirar os chamados “heróis-legado” de circulação e trazer os originais de volta.

Duvida? Então tome Thor Odinson voltando a ser o Deus do Trovão ainda este ano, por mais que não mereça. Ainda não se sabe se o destino de Jane Foster é de fato perder a batalha contra o câncer mas uma coisa é fato: se ela não morrer, muito possivelmente vai se tornar uma OUTRA personagem e sair do caminho de Thor, da mesma forma que o Falcão, ganhando um título próprio.

Calma que ainda não acabou: na recém-publicada Invincible Iron Man #595, descobrimos que Tony Stark deu um reboot no seu corpo para se recuperar dos ferimentos sofridos depois da Guerra Civil II. Isso quer dizer que, muito provavelmente, no aguardado número 600 do gibi, o último com Brian Michael Bendis no comando, teremos o Homem de Ferro de sempre retomando seu título e deixando a Ironheart de lado — e pensa aqui comigo: muito possivelmente, também com um título próprio, no mesmo esquema do Falcão.

Por falar no Bendis, aliás, também saiu recentemente o número final da minissérie Spider-Men II, na qual descobrimos quem é a versão 616 de Miles Morales (no caso, um cara mais velho, ricaço e bem do escroto). Mas sabe qual é um dos grandes acontecimentos finais? Eu te conto: a versão adolescente do Miles, o herói que conhecemos, desiste de ser o Homem-Aranha. Como o próprio Peter já fez um zilhão de vezes, lembremos. “O que pode ser melhor do que ser o Homem-Aranha?”, pergunta o melhor amigo Ganke, sobre o título que Miles dividia com seu mentor. “Descobrir como ser um homem por conta própria”, responde o garoto. É, agora ele tá livre do legado de Peter Parker, pronto pra construir o seu próprio. Hummmmm. Tá me acompanhando?

Rich Johnston, do Bleeding Cool, crava que um dos planos originais seria batizá-lo com uma nova identidade, Spy-D (entendeu a relação com “Spidey”? HEIN? HEIN?). O que faz até um pouco de sentido: seu pai era agente da SHIELD, ele tem aqueles poderes de camuflagem nas sombras que o Peter não tem... Ou seja: novo herói, novo título? Ah, você sacou a ideia.

O Logan de sempre voltando da morte (“X-23, me devolve o uniforme pra encaixar o cabelo pontudo e a identidade!”), pistas sobre Bruce Banner retornando da terra dos pés juntos pra assumir as calças roxas rasgadas que até o momento são de Amadeus Cho (um jovem asiático, veja você)... O que tudo isso significa? “Pronto, Comic Book Guy do meu coração. Agora o Thor é o Thor, o Homem de Ferro é o Homem de Ferro, o Capitão América é o Capitão América, o Homem-Aranha é o Homem-Aranha. Tudo bonitinho. Os outros ganharam outros nomes e outros gibis, não precisa mais se preocupar, o mundo continua exatamente como você conhecia. Diversidade vira uma coisa À PARTE. Não misturamos com os nossos clássicos. Tá tudo bem pra todo mundo, gregos e troianos, a gente não arruma briga e fica aqui em cima do muro”.

Conseguiu juntar todas as peças das entrelinhas e entender onde a gente tava querendo chegar?

Mas vamos te contar um segredo, querida Marvel: não, não tá tudo bem porra nenhuma. Se tudo isso se confirmar, se este for mesmo o caminho que vocês resolveram seguir, para deixar o seu CEO Ike Perlmutter, amigão do presidente laranja dos EUA, bem tranquilão, vocês tão dando aos seus leitores a maior prova de BUNDA-MOLICE da história.

Porque diversidade não é separar os seus personagens negros, mulheres, gays e tratá-los como NICHO, como algo que não se mistura com os branquelos loiros e de olhos azuis. É dar real DESTAQUE a eles, debaixo de seus maiores holofotes, mostrando que, assim como no mundo real, eles estão entre nós. Ou melhor, que eles SÃO cada um de nós. É tirar o seu branquelo loiro e de olhos azuis e colocar um negro gay latino no lugar. E estar tudo bem com isso. Porque ESTÁ, né.

É muito mais forte fazer um jovem menino negro se identificar com um Homem-Aranha que tem a mesma cor de pele do que com um cara chamado Spy-D, por mais legal que o Miles seja (e ele é). É muito mais forte uma garota se identificar com a Thor, a versão feminina de um ícone da ultra masculinidade viking do que com a, sei lá, Trovejante. Percebeu a diferença que esta relação tem, quando você pega os seus maiores ícones pop e vira do avesso? É a coragem de tomar uma atitude. De fazer uma declaração. Sei que você percebeu. Mas uns engravatados de Manhattan tão até agora fingindo que não — e o que é pior: querendo convencer a gente de que, ah, é isso aí.

Em resumo? Numa boa, VAI SE FODER MARVEL.