Marvel, muros e a nossa alma sombria | JUDAO.com.br

Civil War II: The Oath coloca Steve Rogers e Carol Danvers, as duas grandes forças da nova fase do Universo Marvel, frente a frente numa batalha de ideias e ações que refletem o mundo no qual vivemos

“Uma história sem uma mensagem, mesmo que subliminar, é como um homem sem alma”, disse, em 1970, um cara chamado Stan Lee. “Nenhum de nós vive em um vácuo – nenhum de nós é intocável aos eventos do dia a dia – eventos que moldam nossas histórias do mesmo jeito que moldam nossas vidas”. Ele encerra: “Algo ser apenas pra divertir não quer dizer que esvaziamos nossos cérebros enquanto lemos”.

O texto foi resgatado na semana passada pelo editor Tom Brevoort, um dos responsáveis pela Guerra Civil II, o último grande crossover da Marvel. E não são apenas palavras que representam o que a editora tem feito nos últimos anos, mas também ecoam naquilo que acabou de ser publicado, mais exatamente em Civil War II: The Oath.

O especial, que serve de epílogo para a segunda Guerra Civil e, ao mesmo tempo, de prólogo de Secret Empire, a próxima saga da editora, não cai no lugar comum de simplesmente reproduzir os eventos do mundo real, de colocar um “Donald Trump” no meio da comunidade heroica para ver no que vai dar. É menos óbvio do que isso. De certa forma, o roteirista Nick Spencer reuniu o ESPÍRITO DA ÉPOCA atual dos EUA, distribuindo essas vozes e pensamentos entre os mais diversos personagens, adaptando tudo ao conceito dos quadrinhos – ou seja, à diversão mencionada por The Man.

O fio condutor desta HQ é Steve Rogers, o Capitão América. Você já sabe (ou deveria saber) que este não é mais o Bandeiroso de antes, vítima de uma mudança na realidade provocada pelo Cubo Cósmico e pelo Caveira Vermelha que o transformou num agente da HYDRA. Também não dá para dizer que este novo Steve seja um vilão, ao menos no conceito mais tradicional do termo. Na verdade, temos um personagem cínico e manipulador, que acredita que tudo que faz é, de alguma forma ou para alguém, para o bem.

SPOILER! Em uma conversa dele com o que sobrou de Tony Stark – o Homem de Ferro tá em coma depois dos eventos de Civil War II #8 – vamos descobrindo o que está acontecendo. O racha e as feridas causadas pelo conflito que acabou de terminar não estão curadas. Os heróis ainda estão divididos.

Não é só isso: o povo não acredita mais em seus pretensos heróis, que trouxeram mais dor do que alegria. Por isso, eles enxergam com bons olhos a chegada de Rogers ao cargo de diretor da SHIELD – querendo ou não, ele é um soldado e uma pessoa com maior identificação com a população. E é isso inclusive que o próprio Capitão América vende para eles, no discurso depois de fazer o juramento para assumir a organização (fato que não só dá título para o gibi, como também acontece em um grande evento na fachada oeste do Capitólio, tal qual a posse do presidente poucos dias antes da publicação, fazendo os paralelos ficarem ainda mais claros).

Eu sei, o Capitão já foi o diretor da SHIELD no passado, mas agora é diferente. Em parte porque a personalidade dele mudou, mas também porque agora o cargo tem mais poderes após mudanças que aconteceram na legislação. “Quando se consolida tanto poder em um indivíduo, é quase inevitável que ocorra abuso”, diz um jornalista na TV. “O que isso faz é simples: limpa a burocracia e a corrupção. Isso devolve o poder para as pessoas!”, afirma outro. Parece tão real...

E sim, Rogers não é Trump, muito porque ele consegue ser mais sedutor com as palavras. Por mais que você acredite que ele está errado, há um sentido em tudo que diz, principalmente na parte na qual afirma que as ações dos heróis causaram medo nas pessoas, um sentimento que levou ao ódio. Guardadas as devidas proporções, dá pra fazer um paralelo entre a descrença nos super-heróis com a descrença nos políticos.

“Veja, vocês viveram em suas armaduras e se esconderam em suas fortalezas – e mesmo quando morrem, dão um jeito de viver”, diz ele para o amigo em coma. “Mas essas são pessoas reais, Tony. Elas não têm tanta sorte. E talvez não queiram essa utopia futurista e de pensamento avançado que vocês estão construindo. Talvez não queiram evoluir tanto tão rapidamente assim”.

O que o Capitão América esquece – e, talvez, fosse a resposta do Homem de Ferro, se ele pudesse falar – é que a evolução não pede licença, ela acontece. Não nos cabe tentar evitar o futuro, mas nos preparar para ele, incluindo abrir nossas cabeças para a mudança. Talvez o papel dos super-heróis seja isso: o de instrumentos desta evolução, ao mesmo tempo que se aproximam das pessoas comuns.

Só que Tony Stark não está disponível, e a grande voz destoante a do novo chefe da SHIELD é a de Carol Danvers, a Capitã Marvel. Ela se tornou a braço-direito do presidente dos EUA (que, na revista, ainda é o Obama) e até recebeu uma medalha pelos atos de coragem durante a guerra. Por outro lado, Carol não parece ser a voz da razão, inclusive propondo a construção de um escudo para proteger a Terra de invasões alienígenas e outros perigos do tipo. Se você preferir ir direito ao ponto, um muro – que evite qualquer um (alien malvado ou não) de entrar na Terra.

“Isso não é uma defesa, é uma mensagem”. Vale pro escudo no Universo Marvel, vale pro muro no mundo real.

Curioso é que a ideia do muro é rechaçada pelo próprio Capitão América. Talvez porque realmente não acredite nisso, por ter outras intenções ou porque, nessa nova versão, ele odeie secretamente a Carol Danvers. Independente da motivação, ele tem razão, tanto nos quadrinhos quanto no mundo real. “Isso não é uma defesa, é uma mensagem. Você sabe exatamente o que vamos falar para qualquer ser vivo que esteja dos dois lados disso”, diz o Capitão para a Capitã.

Não sei, obviamente, para onde o que está acontecendo na vida real vai nos levar, mas Steve Rogers sabe para onde ele está marchando. É que Ulisses – o inumano que podia prever o futuro, a causa inicial da nova Guerra Civil – trouxe para o Bandeiroso uma visão do amanhã. São as últimas páginas do especial, nas quais vemos os Estados Unidos sob a bandeira da Hydra.

Mais do que nunca, as HQs da editora estão cínicas, mostrando que estamos, de forma geral, mais preocupados com o nosso bem e (no máximo) com o bem dos nossos iguais, e não com o coletivo. Algo para ler de peito aberto e sem esvaziar nossos cérebros, não importa se você é de direita, esquerda, Trump, Obama, Hillary, Temer ou Dilma.

Aliás, pensando no que Stan Lee disse há quase 37 anos, o Universo Marvel tem sim uma alma: a nossa. E isso, hoje, é assustador.