Se Mark Millar fez uma crítica sobre a paranoia da Guerra ao Terror pós-11 de setembro, Brian Michael Bendis surpreende e, no recém-lançado terceiro número de Civil War II, levanta outra discussão BEM atual
SPOILER! Tenho que admitir que, quando a Marvel anunciou qual seria o ENREDO de sua segunda Guerra Civil nos gibis, fiquei bem desanimado para ler. Adoro praticamente tudo que o Brian Michael Bendis escreve, tá bom, mas tinha algo na ideia da trama que não me convencia. Entendo, como já explicamos no JUDÃO, a questão da vigilância, do eterno BBB no qual se transformaram as nossas vidas. Mas colocar Homem de Ferro de um lado e Capitã Marvel do outro, dividindo novamente a comunidade heroica apenas e tão somente porque surgiu um cara que pode prever o futuro?
Devemos combater os crimes antes que eles aconteçam, na melhor tradição Minority Report? A discussão é até relevante. Mas me parecia pouco pra justificar tamanha movimentação no universo da Casa das Ideias, pra mexer com os brios de todo mundo. Por que, vamos lembrar aí, quantos personagens que podiam prever o futuro já existiram na mitologia Marvel? E por que essa discussão teria começado APENAS agora? Por que o tal inumano Ulysses seria tão especial? Não podia, de verdade, ser SÓ isso. Não depois da primeira Guerra Civil, aquela escrita por Mark Millar, a crítica à toda a loucura antiterrorismo surgida depois do 11 de setembro, cristalizada na forma da Lei de Registro de Super-Humanos.
Não dava. Faltava algo neste quebra-cabeças. E a resposta veio, intensa e contundente, nas páginas de Civil War II #3, HQ que foi publicada nos EUA nesta quarta-feira (13). Há quem defenda que o grande acontecimento desta edição foi Clint Barton, o Gavião Arqueiro, matando Bruce Banner — que, é bom lembrar, vinha mantendo seu alter-ego esmeralda sob controle, deixando a “missão” de ser o Hulk sob responsabilidade de Amadeus Cho — com uma flechada certeira. O ato, em si, não é chocante para quem está acostumado ao mundo das duas grandes editoras de gibis de super-heróis, já que a galera morre, ressuscita, bate as botas mais uma vez, volta de novo... Exemplos não faltam. Mas a importância, aqui, é maior do que isso, é maior do que “Bruce vai voltar?”. É a revelação do verdadeiro contexto por trás do tal Ulysses e suas habilidades pré-cognitivas.
Neste terceiro número da série, Civil War II mostra que não deixa nada a dever à sua antecessora e fala diretamente com o movimento #BlackLivesMatter.
Antes que você comece com aquele papo de “ai, não aguento mais o politicamente correto, tudo é culpa dos SJW, deixem meus heróis em paz”, é importante dizer MAIS UMA VEZ que não é de hoje que a Casa das Ideias usa seus personagens para refletir e discutir questões sociais pulsantes no coração da sociedade atual – basta lembrar dos anos 1960, dos X-Men, do preconceito, de Malcolm X e Martin Luther King. E Bendis segue mantendo acesa, com inteligência, esta tradição.
Se você não mora em Marte, deve saber que os EUA estão vivendo um momento atual bastante tumultuado, com diversos casos de violência policial contra negros (em especial aqueles que causaram as mortes de Alton Sterling em Baton Rouge e Philando Castile em Falcon Heights) e uma série de manifestações indignadas da população pedindo justiça. Eis o grande ponto aqui: “ai, todas as vidas importam”, dizem alguns. “A polícia tem que fazer o seu trabalho”, argumentam outros.
Claro que todas as vidas importam. Mas se tem alguma vida por aí que importa menos, ou alguma que importa mais, tem algo de errado. E isso deveria guiar o trabalho da polícia.
Corta agora da vida real pros gibis. Depois da morte de James Rhodes, o Máquina de Combate, Carol Danvers (que vinha vivendo um romance com o cara) fica inconformada e se torna justamente a maior defensora de que os poderes do tal sujeito que prevê o futuro sejam usados para evitar que tragédias como esta aconteçam. Mas eis que do outro lado está Tony Stark, o bilionário de armadura que nos últimos anos se tornou um dos maiores escrotos do Universo Marvel, e é ele quem ergue um questionamento interessante, a voz da razão. Ulysses pode prever o futuro... Mas o quanto o futuro que ele prevê é possível? O quanto os seus próprios preceitos, o quanto a sua experiência de vida, os traumas do passado, o quanto os seus PRECONCEITOS podem afetar estas visões e, por consequência, a capacidade de julgamento de quem se guia por elas?
“Sua personalidade afeta suas visões? Seu estado emocional? Seus preconceitos raciais? Sociais? Políticos? Tudo isso pode afetar o que você vê”. É isso que Stark pergunta ao jovem inumano, amarrado em seu laboratório (eu disse que o questionamento de Tony fazia sentido, mas não necessariamente os métodos que ele usa para colocar sua tese em prática, o que inclui sequestro, um tantinho de tortura e uma réplica digital do cérebro do rapaz).
Quando Ulysses diz que o Hulk vai voltar e vai matar todo mundo, e faz com que todos tenham uma espécie de “experiência” das visões que ele tem (uma variação inédita de seu poder, aliás), todo mundo pira. Afinal, de posse desta previsão, será que o Gavião Arqueiro fez o bem, evitando que um massacre se desenrolasse e um monte de gente fosse morta nas mãos do Golias Esmeralda? Ou atacou o ex-colega de equipe — que nem tinha nenhum “incidente Hulk” há mais de um ano — com base numa previsão que pode ter sido influenciada pela visão que a opinião pública tinha de Banner em sua época como o Hulk, por vezes descontrolado e agressivo?
No calor do momento, quando o Fera descobre que Banner vem fazendo experimentos em si mesmo usando células gama mortas para continuar evitando o surgimento do Hulk, quando todos ficam assustados achando que aquilo poderia ser a prova de que em breve a previsão de Ulysses se tornaria real, eis que vem a flecha de Barton, o atirador mais certeiro do planeta, sem que ninguém esperasse.
O mesmo Barton que confessou o crime imediatamente e se entregou à justiça. O mesmo Barton que, meses antes, foi procurado por Banner, que lhe entregou a ponta especial de uma flecha, modificada para ferir mortalmente o grandalhão, e disse “se eu me tornar o Hulk novamente, atire isso em mim para me matar”. Barton achou que ia acontecer. Porque acreditou na visão de Ulysses. E cumpriu a promessa.
Sacou a sutileza da coisa?
“Não, Steve, eu não vou ter um debate moral com você, isso nunca acaba bem entre nós”, diz Tony, em algum momento do número 1, assim que eles são apresentados ao Ulysses por Medusa, rainha dos Inumanos. Mas, no fim, ele acaba tendo o debate com Carol e Matt Murdock, em pleno tribunal, no julgamento de Clint Barton. Mais do que uma história de super-heróis, esta segunda Guerra Civil é, a exemplo da primeira, um debate moral. E que, pelo menos até aqui, me coloca muito mais do lado do Homem de Ferro do que da Capitã Marvel. Exatamente o oposto da primeira série. Tão surpreendente quanto a própria vida.
Ao final deste Civil War II #3, tudo que tenho a dizer é: tá bom, Bendis. Você me pegou de novo. Agora vamos ver como isso termina.