Meu sobrenome é Constantine, mas pode me chamar de Winchester | JUDAO.com.br

Se eu quisesse ver um arremedo de Supernatural, não precisavam ter “chamado de adaptação das HQs”

Assistir ao episódio piloto da série de TV Constantine, inspirada no cultuado personagem da DC Comics, já causa uma sensação das mais estranhas logo de entrada – afinal, sabemos de imediato que a co-protagonista da trama, a personagem Liv, não vai mais existir na série. Isso vale para ela e também para a sua intérprete, a atriz Lucy Griffiths, que também está fora. Criada especificamente para o programa, ela será substituída por Zed, conhecida dos fãs do começo da série em quadrinhos Hellblazer. Ex-amante de Constantine nos gibis, Zed o ajuda a resgatar sua sobrinha Gemma das mãos de um ocultista pedófilo.

O grande problema é o seguinte: toda a história deste piloto gira essencialmente em torno de Liv. Filha de um antigo (e falecido) amigo de Constantine, ela começa a manifestar os mesmos poderes sobrenaturais do pai, enxergando o mundo espiritual, ouvindo o que ninguém ouve e atraindo a atenção do mago e também de diversas forças sombrias. Ao final do piloto, depois de descobrir uma espécie de “base secreta” de seu pai repleta de artefatos místicos (incluindo o capacete do Senhor Destino, que deixou os fãs em polvorosa no trailer), ela saca algo parecido com um mapa, ativado à base de sangue e no qual é possível ver diversas manifestações demoníacas que vão acontecendo em todo o país. Liv sugere que ela e Constantine caiam na estrada, combatendo estes seres das trevas e…bom, você já entendeu. Sam and Dean mode: ON.

Sacou o problema? As fundações para o que aconteceria a partir daí, a dinâmica de como toda a série se desenvolveria e de como os episódios iriam caminhar, simplesmente ruiu e foi anulada. Ou seja: você assiste ao piloto de uma série já sabendo que a série que vem depois deve se apoiar em uma história totalmente diferente. Bizarro, não? Ainda não se sabe que tipo de loucura eles vão desenvolver para corrigir esta escorregada, tirando uma personagem e introduzindo outra. Se é que de, fato, vão fazê-lo, o que seria ainda mais estranho. Ignorar completamente o piloto e começar do zero? Hum. Não sei.

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Se segura, mina. Você está fora.

Vamos tentar, então, relevar este “pequeno” detalhe e analisar o todo. E vamos descobrir, ora pois, que existe um motivo para a emissora ter pisado no freio e reavaliado seus planos. Porque, depois que este piloto vazou, os comentários espalhados pelos fóruns de fãs de séries/fãs de quadrinhos e também nas redes sociais foram os piores possíveis. Pudera: o piloto é muito, mas muito ruim. Beira o risível. Se parece, resumidamente, com um episódio ruim de Supernatural – uma série que, nas temporadas mais recentes, tem tramas que engolem este Constantine pálido e sem graça com farinha.

A minha principal crítica ao filme do Constantine de 2005, estrelado por Keanu Reeves, é que se trata de um filme bem divertido – não é Constantine, mas é muito divertido. Reeves não lembra em quase nada o John Constantine dos gibis. E isso não apenas fisicamente, mas em termos de comportamento. Só que tudo bem, porque a canastrice do ator joga a favor e ele entrega uma interpretação que segura a platéia, que parece não ter vergonha de rir de si mesma. Legal. O Constantine desta série, vivido por Matt Ryan, é fisicamente perfeito. Não tem o que discutir. Mas é um Constantine frouxo, sem graça, sem metade do tempero que a sua contraparte quadrinística tem. Um Constantine que, ao conversar com um anjo genuinamente interessado em Liz, acaba saindo da discussão com o rabo entre as pernas. Um Constantine meio assustado que, na batalha final em cima de um telhado, parece esperar pela chegada de Dean Winchester para resolver uma situação insolúvel usando apenas os punhos.

O Constantine de Matt Ryan tem apenas o lado amargurado do nosso anti-herói – e não o lado amargo, o que faz uma falta brutal. Este Constantine televisivo lembra muito mais a sua versão Novos 52, que é mais detetivesca, do que o mago sacana e especialista em acordos obscuros com seres sobrenaturais que aprendemos a amar. Estamos diante de um Constantine meio anti-herói, que sofre porque deixou uma garota ser levada ao inferno depois de um conflito com o demônio Nergal. E não diante de um sacana egoísta e egocêntrico que enrola céu e inferno em constantes manipulações para conseguir aquilo que bem entende. Faltam as frases de efeito. Falta o carisma. Falta o charme sujo, quase underground.

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Calma, seu Cardim. Não precisa me bater tanto.

O Constantine da TV tem boas intenções e, apesar de errático, tende a ser um bom sujeito, um cara por quem dá para sentir alguma compaixão. O Constantine dos quadrinhos originais da Vertigo é um genuíno canalha, um cara que simplesmente não dá pra desvendar se está fazendo o bem ou só tentando descolar uns anos a mais na Terra, um cara que se odeia tanto que é possível passar a admirar, a ponto de pensar: “que pilantragem ele vai fazer agora?”. O Constantine dos gibis me convence como alguém capaz de trair um anjo em troca da cura de seu câncer de pulmão. O Constantine da TV, pelo menos pelo que se pode analisar neste episódio piloto, jamais faria isso.

Tudo isso faz muito mais diferença do que o fato do Constantine da TV não fumar. Se a decisão da emissora por não colocar o personagem tragando como se não houvesse amanhã fosse a única, e todo o resto funcionasse, honestamente eu estaria satisfeito. Mas não é o caso. Estamos diante de uma trama pasteurizada, que tem foco apenas no público jovem e que, pela falta de ousadia, acaba mergulhando no abismo do genérico.

Constantine - Season Pilot

Cigarro? Não. Vou só acender o fogão mesmo.

Em resumo, este não é um Constantine sem cigarro. É um Constantine sem alma. O que é bem mais nocivo e perigoso. Se era pra fazer isso, sem problemas, que tivessem escolhido outro personagem e deixado o Constantine para uma HBO, sei lá, que teria os culhões que vem mostrando ter em um Game of Thrones da vida. Mesmo sem cigarro, este sim seria um Constantine à altura.